terça-feira, 30 de novembro de 2010

COI pede provas à emissora britânica que revelou escândalo da Fifa Placar

COI pede provas à emissora britânica que revelou escândalo da Fifa Placar

Envolvido em escândalo, Ricardo Teixeira chega a Zurique em silêncio

Envolvido em escândalo, Ricardo Teixeira chega a Zurique em silêncio

Fábio de Mello Castanho
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ZURIQUE - O presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira, chegou na manhã desta terça-feira a Zurique, na Suíça, por volta das 10h30 (7h30 de Brasília), e se esquivou de perguntas a respeito de acusações feitas pelo jornal suíço Tages-Anzeiger. Em conversa rápida com a reportagem do Terra no saguão do aeroporto de Zurique, o dirigente disse que não iria responder a nenhuma questão. Teixeira está na Suíça para participar do processo de escolha que definirá as sedes das Copas do Mundo de 2018 e 2022.

Na última segunda-feira, o jornal Tages-Anzeiger publicou que, além de Teixeira, Nicolás Leoz (presidente da Confederação Sul-Americana de Futebol, Conmebol) e Issa Hayatou (presidente da Confederação Africana de Futebol, CAF) estariam envolvidos em uma lista secreta de pagamentos da agência de marketing ISMM/ISL. A empresa em questão faliu em 2001 em meio a polêmicas sobre subornos pagos em contratos de TV.

Em comunicado, a Fifa isentou os acusados e disse que o caso está encerrado desde que um tribunal do cantão suíço de Zug multou três executivos da agência em 2008. Oficialmente, a CBF também não se pronunciou sobre o caso.

Membro do comitê executivo da Fifa, e consequentemente com voto na escolha das sedes na próxima quinta-feira, Teixeira já havia sido ligado pelo jornal inglês Daily Mail a um suposto esquema de troca de votos entre Espanha/Portugal, candidata a 2018, e Catar, na briga por 2022.

Anteriormente a esta denúncia, dois dos membros do comitê - o nigeriano Amos Adamu e o taitiano Reynald Temarii - foram afastados da entidade depois de serem filmados enquanto supostamente pediam dinheiro em troca de apoio.

A apresentação das candidatas a sede terá início nesta quarta-feira com os países postulantes a 2018 (Portugal/Espanha, Rússia, Inglaterra e Holanda/Bélgica). Na quinta pela manhã, Catar, Austrália, Coreia do Sul e Estados Unidos mostram suas candidaturas para 2022 antes do anúncio oficial das duas sedes.

Tags: Fifa, subornos

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Mais de 3 milhões fizeram greve



Carvalho da Silva e João Proença destacaram que a greve geral foi a de maior impacto na história do país e sublinharam que o movimento traduziu a esperança dos trabalhadores num futuro melhor
ARTIGO | 24 NOVEMBRO, 2010 - 19:35

Greve geral em Barcelos. Foto enviada para o Esquerda.net
CGTP e UGT afirmam que mais de 3 milhões de trabalhadores fizeram greve no dia de hoje. Em conferência de imprensa conjunta, Carvalho da Silva e João Proença destacaram que a greve geral desta quarta-feira foi a de maior impacto na história do país e sublinharam o apoio e a sensibilização da opinião pública para os objectivos da greve.

Carvalho da Silva fez questão de destacar que a paralisação não foi só do sector público, mas teve também grande abrangência no sector privado. “Não foi só a Autoeuropa”, disse, “mas também nas corticeira, nas metalo-mecânicas, e em diversos outros sectores. O líder da CGTP destacou a participação excepcional dos trabalhadores dos transportes, “não só públicos mas também do sector privado”, destacou a paralisação total do sector portuário e da aviação civil – tirando os serviços mínimos de quatro voos nas ilhas – e ainda a greve nos tribunais, nas escolas e universidades. E ainda a enorme adesão na área da Saúde.

Para o sindicalista, a greve vai ter consequências no futuro, destacando também a cobertura internacional que a greve mereceu nos média. Esta greve deixa os trabalhadores mais exigentes e com mais força para as negociações com o governo, em questões como o salário mínimo e o apoio aos desempregados, avaliou.

João Proença sublinhou que a greve contra as políticas do PEC e traduziu a esperança dos trabalhadores num futuro melhor, e a exigência de mudança de políticas. “Recusamos o PEC 3, mas não aceitamos um PEC 4 nem um PEC 5”, disse. “Os trabalhadores estão a dizer que este não é o caminho, que é preciso valorizar a criação de emprego”.

O líder da UGT acusou o governo de estar a por em causa o princípio da negociação colectiva, ao querer reduzir os salários do sector público e apelar à redução de salários no sector privado. “E isso não aceitamos”, concluiu.

Madeira: Deputados abandonaram plenário solidários com a Greve Geral



No dia da greve, os trabalhos na Assembleia Legislativa ficaram marcados pelo facto de todos os partidos da oposição presentes terem abandonado a sessão em solidariedade para com os trabalhadores em greve, uma iniciativa que partir do Bloco de Esquerda.
ARTIGO | 25 NOVEMBRO, 2010 - 18:59

A iniciativa partiu de uma proposta do deputado regional eleito pelo Bloco, Roberto Almada.
A iniciativa partiu do deputado do Bloco, Roberto Almada, que vestindo uma t-shirt preta com a frase 'BE apoia a greve geral', fez a declaração política semanal, precisamente sobre a jornada de luta dos trabalhadores.

O deputado bloquista criticou duramente as medidas de austeridade "impostas aos trabalhadores e às suas famílias" e não esqueceu os "ditadores que ameaçam de despedimento os ortopedistas em greve" no Hospital Central do Funchal, numa clara referência às palavras de Alberto João Jardim que afirmou estarem a ser preparados dos despedimentos dos médicos "desestabilizadores" do Serviço de Saúde da Região.

Após a declaração política, e por proposta de Roberto Almada, o Grupo Parlamentar do PSD ficou, literalmente, a falar só, uma vez que todos os parlamentares da oposição (Bloco, PCP, PS e CDS/PP) abandonaram os trabalhos em solidariedade com os trabalhadores em greve, aos quais se juntaram depois numa concentração no centro do Funchal.

Chico Buarque - Mulheres de Atenas

http://cursinhopoliusp.blogspot.com/search/label/Hist%C3%B3ria

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Solidariedade ao povo palestino

No dia 29 de novembro comemora-se o Dia Internacional de Solidariedade ao povo palestino.
Esta data não foi escolhida por acaso, ela relembra o dia em 1947, quando a Assembléia Geral da ONU aprovou a divisão da Palestina em dois Estados: O Estado de Israel (judeu) e o Estado da Palestina (árabe). O segundo - o palestino - jamais se realizou. A partilha não foi aceita , pois coube ao Estado de Israel um território maior e mais fértil e, desde a proclamação do Estado de Israel , os conflitos se agravaram.

A História da Palestina não é simples. É disputada por dois povos: palestinos e judeus, ambos descendentes de Abraão, a quem, segundo a Bíblia, teria sido prometida a terra de Canaã. A origem do povo palestino remonta aos tempos bíblicos, quando cananeus, filisteus e outros povos habitavam a região. As conquistas islâmicas do ano 636 até 1917 deram-lhes as atuais características árabe-muçulmanas. O território foi sucessivamente invadido, mas a população original permaneceu na Palestina e deu-lhe o seu nome: "Filistin" ( Terra de Gigantes).

Os judeus ocuparam a região duas vezes : há cerca de 4000 anos ,com Abraão e mais tarde, liderados por Josué, vindos do cativeiro no Egito. Os judeus espalharam-se pelo mundo com a repressiva ocupação romana e ,no ano 135, foram definitivamente expulsos da Palestina. Na Europa , acusados de todas as desgraças reais e imaginárias , os judeus organizaram-se com o objetivo de retornar à Palestina, no final do século passado. Compraram terras e instalaram colônias, mas não levaram em conta o povo que habitava a região há mais de 1.800 anos. Embora o início da colonização tenha sido pacífico, nas décadas seguintes começaram os conflitos violentos que se intensificaram principalmente a partir da década de 20. Após a II Guerra Mundial ( 1945), o mundo descobriu, horrorizado, o massacre dos judeus feito pelos nazistas e apoiou a criação de um Estado que abrigasse os sobreviventes do holocausto e impedisse que a situação tornasse a se repetir.

À proclamação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 seguiram-se seis guerras. Massacrando aldeias inteiras os israelenses foram ocupando gradativamente o território do eventual Estado Palestino, até a totalidade. A maior parte da população palestina foi expulsa. Nem sempre bem recebidos nos países vizinhos, os exilados, desesperados, criaram grupos para, com seus atentados muitas vezes suicidas, atacar Israel é chamar atenção do mundo ao problema palestino.

Dentre esses grupos, organiza-se a OLP ( Organização para a Libertação da Palestina) cujo líder, Iasser Arafat, ganhou reconhecimento internacional especialmente após o final da década de 80, quando renuncia à luta armada e iniciaram-se os acordos de paz.

Pelos Acordos de Oslo, em 1993, foi criada a Autoridade Nacional Palestina, uma espécie de experiência de um governo parcial palestino por cinco anos, findos os quais, seria criado o Estado da Palestina. Vários acordos foram feitos e rompidos, outros, "congelados" pelo governo de Binyamin "Bibi" Netanyahu, do partido conservador Likud. A eleição de Ehud Barak , do partido Trabalhista , em junho de 99 trouxe nova esperança de paz, necessária para a criação do Estado Palestino .Pelo acordo original, o prazo venceu em maio de 1999, mas tem sido constantemente adiado porque as partes não chegaram a um consenso sobre várias questões como a retirada das tropas israelenses das áreas ocupadas e, principalmente a questão sobre Jerusalém, reivindicada pelos dois povos como capital.

Iasser Arafat comunicou a proclamação do Estado da Palestina para 13 de setembro de 2.000, "com ou sem acordo" , porém não alcançou êxito. Frustrados e desiludidos , os palestinos reagiram especialmente após a provocação do general Ariel Sharon, chamado "o general assassino" por comandar diversos massacres contra os palestinos, entrando na Mesquita de Jerusalém com seus seguranças, de forma desrespeitosa. Os noticiários mostram imagens chocantes: os palestinos, em sua maioria crianças e adolescentes, atacando com pedras um exército israelense armado com tanques e mísseis. O conflito chega a um impasse: O governo trabalhista de Barak tem se mostrado mais intransigente que o anterior, reagindo aos protestos palestinos de maneira desproporcional contrariando a maioria dos israelenses que, de acordo com as pesquisas , é favorável à criação do Estado Palestino. Hoje, todos os acordos feitos em busca da paz encontram-se na estaca zero. A esperança de paz na região depende de o povo palestino ver assegurado o seu direito de existir numa terra que é sua, onde seus direitos sejam respeitados e para onde possam voltar os exilados. A solução parece estar exclusivamente nas mãos do governo de Israel.

Geralda Ribeiro Braga - é professora de História e pós-graduada em Política Internacional pela FESP-SP

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Blog do Camasão: Plínio lança livro em Florianópolis nesta quarta-f...

Blog do Camasão: Plínio lança livro em Florianópolis nesta quarta-f...: "Plínio lança livro em Florianópolis nesta quarta-feira O candidato a presidente da república do PSOL em 2010 Plínio de Arruda Sampaio estará..."

terça-feira, 16 de novembro de 2010

‘Lula consolidou o capitalismo e instrumentalizou o Estado no Brasil’

Com a confirmação no segundo turno da eleição de Dilma Rousseff, o país se prepara para viver a etapa pós-Lula, o pai dos pobres que deixou a presidência com consagradora aprovação, inclusive daqueles que um dia ameaçaram abandonar o país caso o operário chegasse ao Planalto.
Para analisar a vitória petista e o que se pode esperar do futuro brasileiro, o Correio da Cidadania entrevistou Ildo Sauer, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e ex-diretor de Petróleo e Gás da Petrobrás na gestão de Lula até 2007. Para explicar como Lula "consolidou a hegemonia do capitalismo sobre as relações sociais e de existência", vai às vísceras da política nacional, desnudando o seu funcionamento no "pós-mensalão" e a partilha das riquezas nacionais entre os mesmos setores privilegiados de sempre.
Para sustentar tamanha metamorfose em relação ao projeto original petista, Ildo aponta como Lula soube instrumentalizar o aparelho estatal, avalizando o apoderamento da máquina pública, a partir de inusitados formatos, por representantes de grandes grupos econômicos. "Entregar de 2,6 a 5,5 bilhões de barris de petróleo e uma hegemonia tecnológica do núcleo da Petrobrás ao Eike, sem nenhuma resistência, foi algo brutal contra o interesse público. Portanto, são vários formatos de privatização".
Ildo faz um importante alerta: a ‘nova cartada’ na ‘partilha’ do patrimônio público vincula-se ao Pré-Sal, a partir do ‘poder autocrático e unilateral do presidente’, ao lado da desmobilização e cooptação de grande parte do movimento social. Situação que remeteria a uma mistura entre os processos vistos no México - onde o PRI (Partido Revolucionário Institucional), que ficou no poder entre 1917 e 1994, instrumentalizou a riqueza do petróleo - e na Argentina - com um sindicalismo na gaveta do Estado, cujo papel se restringe a dar legitimidade social ao governo, que, em troca, atira os restos do banquete em forma de assistencialismo.
Apesar de lamentar seu pessimismo ao final da conversa, e como alguém que participou diretamente da gestão Lula, o engenheiro não fez concessões para descrever as engrenagens da política brasileira, inclusive desvelando a futura esterilidade da Lei da Ficha Limpa. Terminou com uma autocrítica de quem partilhou dos sonhos dos anos 80.
Correio da Cidadania: Como encarou o período eleitoral, os debates que foram levados a cabo, culminado com a vitória de Dilma Roussef nessas eleições?
Ildo Sauer: De certa forma, a campanha eleitoral acabou sendo resolvida em parte pela longa metamorfose pela qual o governo Lula passou. Logo em seu início, quando liderava um governo hegemonicamente do PT, veio a Carta aos Brasileiros, a fim de garantir algo que era razoável – estabilidade econômica, tranqüilidade social, pois se esperava um processo de profundas mudanças por parte dos mercados. Uma carta que, portanto, tornava o governo aparentemente aceitável para alguns segmentos como estratégia de transição.
Evidentemente, todo mundo concordava com a necessidade de estabilidade da moeda, redução do processo inflacionário, já que o sistema capitalista de produção ainda seria hegemônico de qualquer maneira e por longo tempo, e isso tinha de ser mantido. Mas progressivamente, após 2003, 2004 e 2005 passarem tranqüilos, apareceu a ironia de o sucesso do Lula ser o anti-Lula, o avessso de si mesmo, o que foi percebido pelo mercado, pelo sistema financeiro internacional e pela burguesia nacional. Então, o anti-Lula, que de fato residia dentro do Lula, garantiu a estabilidade, sendo seu próprio fiador, à medida que revelou como líder aquilo que alguns já tinham percebido em seu entorno, mas que não estava claro: o partido passou a ser secundário, e a figura carismática de Lula ficou como fiadora das expectativas da burguesia, ao mesmo tempo em que era profundamente donatário e depositário das esperanças do processo construído ao longo de décadas em torno do PT, da mudança.
O processo que ele conduziu foi o de garantir as expectativas de grande retorno ao capital financeiro, via juros, aparelhamento das empresas públicas, BNDES, para manter a taxa de investimento, numa transformação da estrutura produtiva brasileira que se manifestou em vários campos hegemônicos. Criou-se uma petroleira brasileira que faz sombra à Petrobrás – a OGX de Eike Baptista; a petroquímica ficou em torno do grupo Odebrecht; nas telecomunicações, após uma disputa quase de faroeste, com espionagem, dois ministros envolvidos, fundos de pensão, terminou por hegemonizar o grupo Telemar, encastelado no grupo Jereissati e Andrade Gutierrez, com a coincidência, ou não, de seu principal executivo ser amigo de infância da nova presidente; nas obras de infra-estrutura, o BNDES consolidou outros grupos econômicos com hegemonia no Brasil e exterior, nas áreas de agronegócio, carnes, frigoríficos. Há a Vale, que vinha do governo FHC, mas no fundo o Lula criou um monte de Vales; instrumentalizou os fundos de pensão, as estatais, o BNDES e outros bancos para financiar tais ações. E mais ainda: hegemonizou um protagonismo na África, América Latina, de grupos econômicos como vendedores de equipamentos, obras de infra-estrutura, hidrelétricas, rodovias e outros projetos financiados pelo BNDES. Uma espécie de sub-imperialismo.
Com isso, a agenda do PSDB - a chamada social-democracia que na prática implementou todos os cânones do neoliberalismo hegemônico dos anos 90 - foi seqüestrada pelo Lula. Lula seqüestrou a agenda da burguesia, mantendo e ampliando os espaços abertos pelo governo tucano, e ao mesmo tempo se manteve depositário da esperança de um processo longamente construído.
Assim, nestas eleições, havia pouco espaço para uma candidatura legitimamente de esquerda ser ouvida pelas bases, pois ainda há toda essa herança construída de esperança e transformação, ainda formalmente depositada pela população no PT. Isso é demonstrado pelo voto. De onde veio a grande vitória do governo? De regiões que antigamente eram chamadas pelo depreciativo nome de grotões. Mas hoje não existe esse tipo de coisa na democracia, os votos têm o mesmo valor.
É bom observar tais ondas da percepção política. Na ditadura, o MDB, que liderou a resistência eleitoral a ela, se tornou hegemônico nos grandes centros urbanos, progressivamente encurralando a ARENA a regiões periféricas. Veio o PT e o solavanco da social-democracia, varrendo o PMDB pra periferia e tomando seu espaço nos centros urbanos. Agora, é interessante ver o misto: a hegemonia do PT voltou a essas regiões periféricas, com menor grau de desenvolvimento e acesso ao processo de consumo e renda.
Enquanto isso, criou-se nos grandes centros a onda verde, do discurso ambiental, de sustentabilidade, mas sem conteúdo fortemente social, problema básico do país. E ao mesmo tempo, veio o ressurgimento do discurso conservador - numa social-democracia, do ponto de vista teórico, expresso pelo PSDB. No limite do pouco que PT e PSDB expressam programaticamente, o PT em tese é social-democrata, mas muito mais operador da máquina – levou-nos a um discurso um pouco mais populista contra outro um pouco mais elitista, com pequenas nuances na forma de abordar o Estado. Não vejo muita diferença entre privatizar uma empresa ou instrumentalizá-la em favor dos interesses privados. Portanto, nesse sentido, os projetos são parecidos, tanto que não geraram entusiasmo.
Correio da Cidadania: Os votos nulos, brancos e abstenções nesta eleição são significativos deste quadro que o senhor ressalta, de mais semelhanças do que diferenças entre os blocos de poder representados por PT e PSDB?
Ildo Sauer: Sim, é importante notar, para simplificar essa análise inicial: os votos brancos, nulos e abstenções atingiram 28%, dentro de um eleitorado de 135 milhões. O candidato que ficou em segundo, teve 32%; 32 mais 28, já se vão 60%, enquanto os restantes 40% ficaram com a candidata vencedora. De modo que esse é o quadro resultante da longa metamorfose do projeto que nasceu socialista e progressivamente virou gestor dos interesses da burguesia nacional, do setor financeiro, industrial, do setor contratista de obras públicas, expressos no Brasil e no exterior. A grande diferença para o PSDB é que o PT ainda conta com a enorme confiança e esperança dos setores mais distantes, das cidades mais periféricas e mais pobres. O futuro mostrará, no entanto, as semelhanças entre ambos os partido, à medida que o debate evoluir e isso for decantado, com a transparência e capacidade de mobilização aparecendo. Os movimentos sociais têm uma clara identificação histórica, assim como as regiões que citei, com o PT. O movimento ambiental se ancorou na Marina, mas se dividiu. Esse é o quadro brasileiro.
Para definir, o governo Lula foi aquele que consolidou as relações sociais de existência e de trabalho capitalistas com a hegemonia capitalista no país. Até Lula chegar ao poder, havia a dúvida se aqui poderia nascer um experimento de caráter social-democrata, mas profundamente transformador, que apropriasse socialmente os excedentes econômicos provenientes das rendas, com controle público sobre o petróleo, telecomunicações, potenciais hidráulicos, sobre tudo que é patrimônio da nação, inclusive a terra, cujo resultado econômico seria apropriado para fins públicos. Mais do nunca, vemos uma privatização e internacionalização da terra; ao invés de fazermos a reforma agrária, nós estamos internacionalizando cada vez mais o agronegócio e o acesso à terra.
Portanto, o governo Lula foi o que consolidou o capitalismo no Brasil, gerando a tal falta de diferença na campanha.
Era nítido que todos procuravam mostrar quem tinha feito mais disso ou daquilo no passado. Mas não se discutiu a reforma da educação, necessária, com conceito e amplitude, horizontalização; não se discutiu a reforma agrária, que ficou escondida; não se discutiu a reforma urbana, a questão da moradia, do planejamento, abarcando onde as pessoas vivem, trabalham, circulam, enfim, a mobilidade de um transporte público de qualidade; não se discutiu a questão da reforma da saúde, e não há um brasileiro que queira estar submetido ao nosso sistema de saúde público, muito bem concebido e mal implementado. Ninguém deseja circular nos transportes públicos nas grandes metrópoles; ninguém acredita que a proteção ambiental hoje, da qualidade do solo, ar e água nas cidades e em termos globais, seja aceitável; ninguém está satisfeito com o volume de investimento em ciência, tecnologia e pesquisa.
E, no entanto, o país parece feliz, o que é um paradoxo. De onde vem isso? Creio que da pequena sensação de bem estar, promovida por uma conjuntura econômica, externa e interna, favorável.
Com a situação pós 2ª. Guerra, a visão cepalina da economia, de Celso Furtado e tal, denunciava o subdesenvolvimento em parte como produto da deterioração dos termos de troca, em que a produção primária – essencialmente minérios, agricultura –, por ser de baixo grau de manufatura, exportada pelos países latinos, se defrontava com o enorme valor atribuído às importações de produtos de maior conteúdo tecnológico e industrializados.
Houve uma reversão desse processo comandada a partir do dinamismo da economia chinesa, que passou a ter a necessidade do afluxo de alimentos, matérias-primas etc., para poder incorporar 40, 50 milhões de chineses todos os anos ao processo modernizado de produção, saindo da atividade camponesa, braçal, de baixo nível de apropriação energética, para o nível de produção industrial urbanizada. Portanto, acho que essa situação da China e da Ásia comandou tal transição, fazendo sua revolução industrial e urbana, iniciada nos anos 70, com uma grande quantidade de empresas estatais planejando estrategicamente e implementando. Na China, a renda da terra não existe. Os solos urbano e rural pertencem ao Estado. Assim, o preço da terra e da moradia, como custo de reprodução da força de trabalho, são bem menores, propiciando o acúmulo de enormes excedentes.
O dinamismo chinês, e em parte indiano também, permitiu, mesmo com a crise de 2008 que afetou Europa e EUA, que não se afetasse a valorização progressiva dos produtos primários brasileiros. Porém, ao mesmo tempo, assistimos à deterioração da nossa balança de pagamentos, porque a taxa de câmbio é muito valorizada em função da alta taxa de juros, devido à necessidade de atrair dólares para nossas reservas – as quais, por si só, já custam muito, pois implicam em ampliação da dívida pública interna para a compra e manutenção dessas reservas, com um custo de 12% ao ano sobre os 270 bilhões de dólares de reservas. A dívida pública não pára de crescer desde o governo FHC, já tendo alcançado R$ 2,2 trilhões, parcela significativa do PIB, de maneira que tal quadro deixa a preocupação com a desindustrialização futura.
De qualquer maneira, tal período de prosperidade comandado por essa conjuntura internacional foi determinante para a pequena sensação de bem estar, que permitiu dar um pouquinho mais para os que nada tinham, e muito mais para aqueles que já tinham muito, configurando a partilha do governo Lula, consolidando definitivamente as relações sociais capitalistas e abafando a expectativa de um movimento social que propunha outro quadro. É isso que foi revelado. O discurso tradicional da esquerda foi seqüestrado, e de certa forma também foi seqüestrada a prática da direita. E o Lula, com uma mão de cada lado, emplacou sua candidata, ainda que de forma muito mais apertada do que podia supor a dita popularidade de seu governo.
Assim, o que vejo no próximo governo é o aprofundamento do capitalismo nessa trajetória e, a partir daí, talvez, um espaço para o novo debate. É a minha percepção.
Correio da Cidadania: Portanto, Dilma levará adiante o legado de Lula, reforçando as tendências neoliberais, como a continuidade da política econômica, ao lado das tendências sociais/assistenciais do governo Lula, com eventual ampliação do Programa Bolsa Família.
Ildo Sauer: É muito claro. Mais assistencialismo, mais Bolsa Família, quando o caminho necessário para mudar a sociedade é criar autonomia, promover independência, que só se faz com as reformas da educação, urbana, da mobilidade, agrária, da infra-estrutura... Falo reforma, não revolução; reestruturar o que existe, dando novos sentidos, direção e conteúdo.
Como o produto social é único no PIB, é preciso escolher em que direção vão os recursos, que caminho teremos. E o que está aí é mais do mesmo. Grande parte da poupança é canalizada pelos bancos públicos, e muito pouco se reverte em investimento público, como se viu, por exemplo, no programa Minha Casa Minha Vida. Todos reconhecemos a enorme carência da habitação, mas não só isso. Além de casa, as pessoas precisam de transporte, escola, morar menos distantes do trabalho... A reforma urbana tem de ser mais ampla.
E o que esse programa engendrou? Um enorme movimento de especulação imobiliária, em que a renda do solo urbano acabou enriquecendo pequenos grupos especuladores. E mais ainda: hoje temos uma longa ironia sobre a promessa de ‘minha vida’ e ‘minha casa’. O que se criou? Dinheiro dos fundos públicos, dos fundos de garantia, do FAT, que são poupanças mandatórias da força de trabalho e que recebem uma remuneração abaixo do valor capitalista, de 3% ao ano de juros sobre o fundo de garantia, sendo apropriado pela Caixa, que empresta esse dinheiro muitas vezes a empresas estrangeiras, muitas das quais fracassaram no mercado imobiliário dos EUA e agora estão aqui. Elas tomam esse dinheiro, compram a força de trabalho dos trabalhadores, construindo a casa com a força de trabalho e a poupança deles, com mediação dos bancos e lucro enorme, terminando por criar uma dependência de 20, 30 anos do trabalhador com as prestações sobre aquilo que foi uma valorização extraordinária do capital originalmente do próprio trabalhador, que o poupou compulsoriamente via fundo de garantia.
Nesse caminho, o que houve? A especulação do solo urbano, que explodiu de preço, um sobrepreço enorme no custo do trabalho incorporado aos insumos e mão-de-obra. Aí se expressa o verdadeiro caráter capitalista desses projetos ditos sociais. Há outros modelos, desde os mutirões, cooperativas e uma estrutura planejada, com o planejamento urbano retomado da localização urbana em relação à escola, trabalho, planejando também a mobilidade.
De repente, isso permitiria não soltar da garrafa com tanta força o espírito da especulação e da acumulação quase primitiva sobre o solo urbano e a construção. Digo isto pra mostrar como projetos que ancoraram grande parte da aprovação ao governo são na verdade mais do mesmo, significando cada vez mais acumulação capitalista para quem controla os meios. E, claro, enquanto a economia continuar crescendo, haverá uma sensação de bem estar.
Podemos dizer que temos um enorme peleguismo político, para não chamar de populismo, paternalismo, agora maternalismo. A única solução é a busca de um grande debate de projeto nacional, sobre quais as propostas concretas para as reformas citadas anteriormente, os planos de proteção ambiental e, acima de tudo, para o setor do mais extraordinário excedente econômico: as rendas do petróleo e o setor de energia, temas varridos pra baixo do tapete, que só voltaram à campanha após provocações de gente externa, que mostrou claramente que o rei estava nu, pois ambos se acusavam de privatistas e ambos estavam corretos.
O governo FHC iniciou a entrega do petróleo como um todo, dando razão a ambos em suas acusações – e não se pode diferenciar o petróleo do Pré-Sal daquele das demais camadas, pois são qualitativamente pouco distintos, com diferença raramente acima de 10% em seu valor; portanto, tanto faz 60 ou 70 dólares no preço do barril, pois de toda forma são valores astronômicos. O governo Lula exerceu por muito mais tempo, e talvez com mais gosto, o modelo de concessões criado por FHC, e no final propôs uma mudança já obsoleta, a da partilha, ao invés de um novo modelo.
O que está no horizonte (aliás, a grande ameaça política que vejo ao país)? Se olharmos as experiências de México e Argentina, vemos dois paradigmas que inspiram cautela com o futuro. Se houver um crescimento econômico, a tendência é que a "pax lulensis", da mão direita grande e esquerda pequena (mas que afaga o coração e a consciência dos mais humildes com redistribuição), se mantenha e o capitalismo floresça no Brasil. Se houver crise, o governo talvez lance mão de um recurso que remete à história mexicana... O México fez uma revolução muito sangrenta no início do século passado, que se institucionalizou no chamado processo da Constituição de 1917; em 1938, a nacionalização do petróleo e a criação da Pemex passaram a gerar um fluxo de excedente econômico comandado pelo Estado e pelo PRI, que o permitiu ficar no poder de 1917 a 1994, quando, por corrupção, exaustão e crise econômica, acabou varrido por um governo mais conservador ainda. A partilha do excedente econômico do petróleo mexicano é algo que está no horizonte e merece atenção, porque o Projeto de Lei que tramita no Congresso delega ao presidente ouvir do conselho nomeado também por ele a definição sobre quase tudo que será feito; o ritmo em que o Pré-Sal será colocado em partilha, quem vai participar do processo e quem vai dirigir tudo.
Nesse sentido, a experiência mexicana é o exemplo de como a apropriação do lucro do petróleo, comandada pelas instâncias do governo, permitiu uma partilha entre as elites, fortalecendo-as e mantendo-as no poder. Ao mesmo tempo, temos um movimento sindical no Brasil que perdeu seu rumo classista histórico; teve um período de discurso socialista de enfrentamento ao capitalismo, mas busca hoje a conciliação, à semelhança da Argentina, onde a principal tarefa das grandes centrais e sindicatos - que se enfrentam mutuamente, mas se abrigam no governo, que lhes dá recursos, espaço político, mantendo a corrente sindical ativa - é conferir uma aura de legitimidade social aos governos.
Portanto, se olharmos as duas experiências, podemos vislumbrar a enorme dificuldade, mesmo em situações de crise daqui pra frente, que a esquerda brasileira terá em se reorganizar, pois está claro que o atual governo não é mais de esquerda; seqüestrou boa parte do discurso de esquerda, mas sua prática é nitidamente conservadora.
Dessa forma, é o desafio que sobra: compreender o que está em jogo, buscar, talvez, uma frente de esquerda e amplificar os debates públicos. Uma frente que, a exemplo de outras ondas, consiga se multiplicar, para, na medida em que as contradições ficarem mais claras, se agrupar em uma iniciativa política.
Acho que a esquerda, com seus méritos específicos, está muito fragmentada, em muitos partidos. Creio ser hora de pensar, como saída para o debate, e o atual quadro de enfrentamento, numa frente de esquerda que abrigue tais partidos, abrindo discussões sobre todas as questões em jogo, elaborando propostas concretas em torno dessas reformas e de como apropriar socialmente os recursos, disputando-os com o governo de turno. Certamente, se não houver tal pressão, a partilha será pior ainda, e creio que esse é o nosso papel.
Correio da Cidadania: Acredita, de todo modo, que a futura presidente possa, de alguma forma, caminhar do foco mais assistencialista das políticas sociais sob o governo Lula – a exemplo do Bolsa Família - para um programa mais abrangente de distribuição de renda - incrementando, por exemplo, as políticas de valorização do salário mínimo e se contrapondo aos aspectos do projeto de reforma tributária, já em fase de discussão no Congresso, e que são prejudiciais à seguridade social?
Ildo Sauer: A campanha eleitoral deixou como ironia paradoxal um xeque-mate no governo que entra. A partir do momento em que a oposição conservadora propõe aumento do Bolsa-Família e do salário mínimo, o governo entrante não terá outra saída a não ser acompanhar a idéia. Paradoxal que tenha vindo do movimento conservador essa proposta de redistribuição. O alcance vai depender das contas públicas, da dívida pública e da taxa de juros extremamente elevada, promovendo uma dilapidação do valor do trabalho, na medida em que os impostos são arrecadados e encaminhados para bancar a usura do sistema financeiro, já que temos uma das taxas mais altas de remuneração financeira do mundo.

Nos EUA, tem até um movimento em curso de aumento da liquidez com injeção de dólares a custo muito baixo. É uma tendência natural que parte significativa desses dólares saia, chegue ao Brasil, aprofunde a queda da taxa de câmbio daqui, aumente as reservas, ou venha fazer investimentos como comprar terras, desnacionalizar mais empresas na área econômica, eventualmente até para forçar o governo a abrir mais espaço a empresas estrangeiras na exploração do petróleo, quando o projeto devia ser o contrário.
Devia se proceder a um maior conhecimento e delimitação das reservas e só produzir petróleo no ano para custear os investimentos das reformas da saúde, urbana, educacional, da infra-estrutura, mobilidade (inclusive de longa distância), agrária, viária, dos portos, da proteção ambiental, de ciência e tecnologia. E ficar com uma reserva de petróleo de valor debaixo da terra, não sendo administrada por uma oligarquia política que vai disputá-la a ferro e fogo dentro dos conceitos que descrevi antes. Não acredito que não haja nenhum investimento.
Há uma pressão no modelo que o governo discute agora de promover uma rápida licitação dos contratos de partilha, para abrir espaço econômico de investimentos em plataformas e infra-estrutura, capturar finanças e converter tudo em dinheiro. Tirar o petróleo debaixo da terra e convertê-lo em dinheiro.
Nesse processo, todo mundo vai ganhar. O governo vai acumular algum capital financeiro lá fora no fundo social, não se sabe em que moeda, porque todas estão em xeque hoje. Vão investir em títulos da dívida americana? Em euro, que não tem muita estabilidade, em função de sua credibilidade não estar ancorada em nenhum tesouro nacional (é uma confraria que tem uma moeda)? E os EUA estão em franca decadência. Em que moeda vamos verter o petróleo, em que país, na América Latina, África, EUA, Europa? É muito mais simples deixar o petróleo debaixo da terra e só produzir o volume necessário!
Correio da Cidadania: E controlar de verdade a exploração.
Ildo Sauer: E, antes disso, saber quanto tem de reserva, pra saber em que ritmo produzir ao longo do tempo. Por duas razões: em primeiro lugar, para tirar de lá apenas o excedente econômico necessário ao financiamento do projeto nacional de desenvolvimento econômico e social nos paradigmas que acabei de citar; e, em segundo lugar, para poder participar. O governo brasileiro não pode criar motos-contínuos, que, uma vez assinados os contratos, vão cumprir as etapas automaticamente.
Encontrou petróleo? Vão fazer o plano de avaliação, saber se é comercial, e, se for, vão começar a produzir e, o mais rapidamente possível, converter em dinheiro, no interesse daquele contrato. Isso se choca com a necessidade de ver qual o volume de reservas disponíveis para financiar as prioridades nacionais e, em segundo lugar, com o controle da participação brasileira no mercado internacional. Porque, sem o Pré-Sal do novo modelo, a produção anunciada hoje, só pela Petrobrás, prevê quase 6 milhões de barris por dia em 2020. Só por parte de outro empresário, que recebeu desse governo em 2007 o volume que agora já está entre 2,5 a 5,5 bilhões de barris, valendo de 27 a 55 bilhões de dólares como patrimônio, já se anuncia que em 2019 estará sendo produzido 1,4 milhão de barris por dia, sendo que a Petrobrás não produz 2 milhões atualmente.
E vão exportar tudo que se refere ao que está fora do novo modelo do Pré-Sal, mas como parte do que FHC e Lula entregaram. O Brasil vai ser o 3º. maior exportador do mundo. Em primeiro lugar, vem a Arábia, com 10 milhões de barris/dia; depois a Rússia, com 8 milhões; o Brasil estará em mais de 5 milhões de barris possivelmente em 2020, enquanto os demais não passam de 4 milhões. Isso apenas com o que se tem hoje entregue somente a dois grupos, Petrobrás e OGX, leia-se Eike Baptista - fora os outros que estão entrando. E note bem que este grande empresário já resolveu ser parcimonioso. Deu 1 milhão de reais pra cada campanha, de Serra e de Dilma, dizendo ser necessário não ser mal tratado por nenhum dos dois.
Desse modo, veja como é grave o risco da mexicanização. Uma enorme economia petrolífera, comandada por um governo na forma como vem se configurando: um condomínio de partidos e líderes com parca, digamos assim, capilaridade entre as forças sociais, e, ao mesmo tempo, sob pressão, do outro lado, dos grandes grupos econômicos, com enorme capacidade de influência.
Para quem produz tantos bilhões de barris, e sabendo como é comprável o financiamento das campanhas eleitorais e a lealdade dos eleitos a esses interesses - dentro do conceito second life, do discurso público diferente da prática nas entranhas do poder -, este é o caminho.
Correio da Cidadania: Isso é o mais impressionante. Hoje em dia o sujeito afirma abertamente o que pode ser entendido, sem distorção alguma, como a ‘aquisição particular’ do mandato – ironicamente, privatização do próprio parlamentar. Paga-se a propina na campanha e alguns interesses privados são escancaradamente atendidos por sobre outros.
Ildo Sauer: Essa é uma parte das questões políticas e econômicas que se colocam, porque no fundo eu vejo as limitações, no atual estágio da sociedade brasileira, de um partido que no discurso mantenha a realidade, mas com propostas práticas. Veja que até agora só falei de reforma, não de revolução, pois não vejo espaço para tanto. Talvez não fosse um sonho, mas não vejo como possível. Nem essas reformas estão na agenda! Essa é a tragédia resultante da consolidação da hegemonia política.
Por isso que PT e PSDB, que teoricamente teriam essa convergência social-democrata, mutuamente se excluem. Eles não querem um projeto, querem um espaço de poder, para manejar os recursos econômicos e serem gestores e líderes dessa partilha. Não há espaço para ambos fazerem a mesma coisa, que não é a reforma social-democrata. É gerir o capitalismo tal como ele está, com sua crueza, virulência, mascaramentos, contradições.
Nesse sentido, o processo político brasileiro lamentavelmente está subordinado à hegemonia dos grandes grupos econômicos, que estão se convertendo em meros síndicos do grande condomínio econômico. Como disse, o governo Lula avançou ao consolidar grandes grupos brasileiros dos vários campos da economia.
Consolidou alguns bancos, com fusões, principalmente após a falência de vários deles em 2008. Na área de eletricidade, o grupo Rede e a Camargo Correa ficaram hegemônicos na distribuição, grupos europeus e nacionais na transmissão e as estatais do sistema Eletrobrás foram convertidas em muletas voltadas a dar confiança às empreiteiras e ao capital privado. Tanto que a tarifa elétrica hoje é uma das mais caras do mundo ao consumidor cativo, e uma das mais baratas do mundo para os 600 consumidores privados do mercado dito livre, mas que na verdade é apenas usurpador. Na área da petroquímica, a Braskem se tornou hegemônica, com a Petrobrás servindo de âncora, por imposição do governo. Na área do petróleo, o caso mais notório é o da OGX, mas há outros grupos nacionais e internacionais crescendo muito aqui, na única das três grandes fronteiras mundiais do petróleo que lhes permite.
Além disso, o grande patrimônio brasileiro hoje na área de petróleo é duplo. De um lado, os recursos naturais estão debaixo do sal e da terra, valendo quase o mesmo. A organização social capaz de convertê-los em riqueza quando necessário e a Petrobrás estão, ambas, sendo alvo dessa mediação da entrega. Como exemplo, a OGX, como já ressaltado, criada em meados de 2007 - informação já confirmada pelo governo -, com ajuda de ex-integrantes dos governos Lula e FHC, arrancou lucros estratégicos sem nenhuma resistência e ação do governo. E logo depois de comprar os blocos em novembro de 2007, vendeu 38% das ações por 6,7 bilhões de reais, 11 meses depois de criada.
Portanto, ela já valia 17 bilhões e, ao fazer os primeiros furos, conforme previsto e denunciado previamente em 2009, já anuncia reservas de 2,6 a 5,5 bilhões de barris. E cinco bilhões de barris equivalem a tudo que o governo incorporou da Petrobrás pra aumentar seu capital, no valor de 42 bilhões de dólares hoje. O valor de mercado hoje seria dessa ordem, o que colocou um senhor como o mais rico do Brasil e um dos mais ricos do mundo, tornando-o generoso em filantropia. Vai às favelas, duplica a generosidade do presidente da República, ao arrematar o seu terno de posse em um leilão por 500 mil. E ainda o devolve ao presidente, dobrando a aposta. Vai ao Teatro Municipal e vira mecenas da arte e cultura, com migalhas do que herdou num lance articulado nos bastidores do governo, que não reagiu.
Esse é o indicador claro do risco que falo da articulação em torno do petróleo como mecanismo aglutinador de forças e recursos para manter a hegemonia político-eleitoral. É um exemplo concreto e aconteceu agora. Os mesmos atores estão vivos, reavivados e abençoados nas urnas.
Correio da Cidadania: Em entrevista ao Correio, o sociólogo Chico de Oliveira afirmou que, na medida em que o governo Lula tem consolidado no Brasil o ‘capitalismo monopolista de Estado’, chega a ser mais privatizante do que o de FHC. Ao mesmo tempo, o senhor ressaltou há pouco que não há muita diferença entre privatizar uma empresa ou instrumentalizá-la em favor de interesses privados, e que está se consolidando no Brasil uma partilha do espaço produtivo entre grandes grupos econômicos, entre eles Camargo Corrêa, Odebrecht, Eike Baptista, sob patrocínio do governo e com a ajuda do BNDES e dos fundos de pensão. Essas duas assertivas não estão bem associadas entre si?
Ildo Sauer: Sim, e caso não haja uma resistência popular organizada, com capacidade de entendimento da dimensão política, compreendendo que uma onda de mudança hegemonizada pelo PT não mais está em curso - em função da metamorfose do partido –, corre-se um sério risco de se consolidar esse curso econômico.
Mas os movimentos sociais ainda estão presos a isso, e é difícil recriar e mudar tal compreensão. É o desafio político: ter uma proposta e a capacidade de fazê-la compreendida em seus conceitos pelas bases, os verdadeiros interessados, ou seja, os trabalhadores, os grupos sociais, estudantes, todos aqueles excluídos da grande festa; aqueles que habitam a senzala da esperança, enquanto a Casa Grande faz a festa. E o padrinho, e também a madrinha, tem uma mão muito gentil na Casa Grande, enquanto a outra, pequenina, apenas acaricia o povo que mora na senzala.
Correio da Cidadania: O grande patrimônio brasileiro na área do petróleo está, como dito pelo senhor, submetido a uma mediação perversa para entrega a grandes grupos econômicos. Haveria alguma chance, mínima que fosse, de a presidente eleita negociar a volta do monopólio do petróleo, revertendo a Lei 9478/97 de FHC – já que se trata de uma reivindicação de vários movimentos sociais, bem como de estudiosos, que consideram que a substituição do modelo de concessão pelo de partilha da produção não é satisfatório, já que o setor privado continuará com presença maciça e determinante?
Ildo Sauer: Essa discussão tem dois papéis. Um de tentar de fato retomá-la, porque tecnicamente é possível se apropriar do excedente econômico do petróleo por vários meios: tributários, sobre a partilha, imposto de renda, há vários mecanismos. Mas o problema é que, embora possíveis tecnicamente essas várias apropriações, quem controla a reserva outorgada, quem controla a produção na partilha ou concessão, tem um poder econômico enorme na mão pra convencer o governo e o Congresso, como ficou claro nessa eleição e com o que já foi entregue. Isso está patente e claro!
Por isso a defesa do monopólio, da necessidade de delimitar, certificar e conhecer as reservas, definir publicamente o debate do ritmo de produção, do que fazer e onde aplicar o excedente econômico, em que reformas sociais. E tal idéia pode se tornar hegemônica, pois também tenho percebido nos vários campos estudantis, de operários, profissionais liberais e até de empresários, que, quando compreendem o que está em jogo, refloresce a idéia da necessidade do controle político da sociedade sobre esse recurso. Não é questão que se delegue a qualquer governo eleito, pois o transcende. Portanto, esse é um discurso que acho que chama a atenção e permite mobilizar parte da sociedade.
O outro ponto é a destinação, sem dúvidas. Todo mundo reconhece a necessidade da reforma da educação, da saúde, urbana, da mobilidade, da recuperação ambiental, do aprofundamento da ciência e tecnologia, de toda a infra-estrutura de circulação da produção nacional. É uma agenda que, conciliando os dois debates, pode mobilizar as forças. Mas não seria tarefa fácil. Até porque temos de reconhecer que qualquer governo tem um ano de graça, a não ser que aconteça um escândalo muito grande ou uma desgraça, o que é improvável.
Correio da Cidadania: Um governo Serra não seria, nesse sentido, ainda mais privatizante do que o governo Dilma poderá ser no que diz respeito ao nosso petróleo - afinal, ex-ministros do governo FHC criticam explicitamente a substituição do modelo de concessão pelo de partilha, sob o argumento de que o Estado não tem condições de levar adiante os investimentos astronômicos necessários ao Pré-Sal?
Ildo Sauer: Eu não afirmaria isso porque acho que ambos foram privatizantes. O que mudou foi o instrumento, a modalidade e a configuração da privatização. Entregar de 2,6 a 5,5 bilhões de barris de petróleo e uma hegemonia tecnológica do núcleo da Petrobrás a um grupo privado, sem nenhuma resistência, foi algo brutal contra o interesse público. Portanto, são vários formatos de privatização.
O que deve ser discutido é como o excedente econômico e a riqueza nacional são colocados a serviço das elites, e como poderiam ser colocados a serviço das reformas fundamentais na sociedade, pra criar a autonomia de todos os brasileiros.
Não vou ser repetitivo, mas é que se desgastou muito o debate da educação, saúde, nas eleições. "Sou o gerentinho que vai fazer tantas APAS, AMAS, Escolas Técnicas, não sei o que...". Cadê o conteúdo do debate? O SUS como conceito é excelente, mas está às traças. Basta dizer que poucos brasileiros que têm condições de evitá-lo se submetem aos seus serviços. Lamentável, mas é a tragédia do Brasil. A primeira delas, a educação.
Nesse sentido, são dois formatos semelhantes da mesma prática. Com nuances diferentes, mas conteúdo semelhante, e conseqüências também semelhantes. Interessante que tanto os grupos financeiros como empresariais são os mesmos, o que denota claramente que esse é um governo a serviço dos interesses dos grandes, como seria o outro, um com um estilo mais populista, outro mais elitista, o que é a grande diferença entre eles.

Evidentemente, para o grande empresariado e a burguesia, o governo sucessor do Lula é melhor, pois tem mais aceitação popular, além da confiança de tais setores, o que se cristalizou nas eleições. Eles devem estar muito felizes, pois fizeram a aposta certa. Tudo que vier de fora de tal expectativa será da mobilização popular, o que é uma tarefa gigante que se coloca diante daqueles que ainda têm uma concepção de sociedade diferente da que hoje é hegemônica - não no discurso, mas na prática real.
Correio da Cidadania: Pensando no setor elétrico, citado pelo senhor, o governo Lula tinha entre seus objetivos iniciais uma reorientação do modelo do setor relativamente ao modelo privatista de FHC. Vários estudiosos entrevistados por este Correio confirmam sua avaliação de que esse objetivo foi alcançado de modo muitíssimo limitado, na medida em que continuam a prevalecer grandes consumidores e sua lógica de lucro, a descapitalização das estatais e a influência de interesses de poderosos setores eletro-intensivos sobre o governo. Como ficará, a seu ver, o setor elétrico sob um governo Dilma? Diante de suas conjecturas políticas, tudo indica que não será nada menos privatizante do que o seria um eventual governo Serra.
Ildo Sauer: Ela é a madrinha do que foi feito, eu dizia que ela criou o Bolsa-energia para o ‘mercado livre’, que valeu cerca de 20 bilhões de reais de 2003 pra cá... Por que haveria de alterá-lo? Eles têm tido alguns dissabores porque periodicamente aparece, como neste ano, a ameaça de garantia do suprimento. Exatamente porque o mercado livre não contrata transparentemente sua demanda a futuro, vivendo de especular, do que o governo entendia como sobras e que não eram, e sim energia firme, que custava capital e recursos às estatais, vendida como se fosse energia de sobra, secundária, sem garantia e segurança.
Por isso, de vez em quando aparece, como agora, a idéia que chegaram a cogitar de operar todas as usinas de gás, e fora da ordem de mérito. Portanto, o consumidor cativo que paga, em beneficio dos livres, especuladores. Assim, nesse último ano até se chegou a cogitar operar as usinas a diesel, pois os reservatórios chegaram próximo ao limite mínimo de confiança. Em caso de crescimento econômico no ano que vem similar ao deste ano, podemos chegar ao fim de 2011 com muito risco, se a hidrologia dos dois anos acabar sendo desfavorável. O que mostra a instabilidade, pois a única reforma feita foi a da necessidade de contratação de longo prazo, uma proposta nossa, mas como veio junto da idéia de que parte do mercado não precisa registrar contratos de longo prazo, já veio fraudada no seu objetivo por conta dessa não contratação.
O restante do modelo ficou igual, com algumas pioras, como a não recuperação das estatais como empresas autônomas, sendo colocadas de muletas de parceria com empreiteiras e investidores privados na transmissão e geração; continuamos privatizando os potenciais hidráulicos; aliás, não fomos capazes de escolher os melhores nos últimos anos, tampouco de fazer os estudos sociais, ambientais, obter as licenças, negociar de maneira civilizada com as populações atingidas. Nada disso foi feito, repetimos o que era feito desde os governos militares. Como ela (Dilma) comandou tudo, talvez um pouco mais distante a coisa ande melhor, mas não há uma expectativa muito positiva de que isso aconteça...
E, de novo, como grande parte dos movimentos sociais atingidos por essas ações todas nos últimos momentos se posicionaram a favor dela, na falta de outra alternativa, chegamos a uma desmobilização diante do que vem por aí.
Correio da Cidadania: Dessa forma, a gestão do setor, um dos mais rentáveis de toda a economia nacional, é uma síntese do aparelhamento do Estado por interesses privados, além de uma pista de que tal modus operandi será mantido.
Ildo Sauer: O setor elétrico foi, sim, colocado a serviço dos interesses do grande capital. O BNDES financia tudo, os empresários privados comparecem de um lado com a muleta da estatal e do outro lado no mercado cativo para garantir a compra, além da pequena porção que vai para a especulação do ‘mercado livre’.
De forma que criamos um quadro onde a idéia anterior do PT de que o excedente econômico possível no setor elétrico (a diferença entre custo de produção e o valor na esfera do mercado da circulação na eletricidade), e mesmo em outros, como nas telecomunicações, poderia ser usado como alavanca para resolver as assimetrias na área das carências sociais, inclusive na infra-estrutura energética para todos, foi para as calendas. Fizemos o Luz Para Todos, com muita propaganda, mas nem todos têm luz, e muitos a têm precariamente. Além de muitos escândalos.
As estatais foram canibalizadas pelo mercado livre e colocadas a serviço dos novos investimentos desejados pelas empreiteiras; deixou-se de fazer a manutenção, o que levou a dois apagões notórios: o da linha de Itaipu e outro no Nordeste, mostrando a precariedade em que se encontra a manutenção. Depois de 20 anos operando com plena confiança, Itaipu caiu em descrédito, operando abaixo do nível de projeto, usando usinas a gás para segurar, por falta de manutenção e, claro, gestão do setor. Eis o quadro advindo da submissão da gestão das empresas aos contratos que as empreiteiras demandam. As estatais têm poucos recursos porque venderam grande parte de sua energia muito abaixo do custo.
Ademais, grande parte de suas gestões foi loteada entre interesses de base partidária, de despachantes de interesses empresariais e políticos, cuja demanda e atenção não eram voltadas à plena manutenção, confiabilidade e operação no nível máximo. Os gestores estavam lá, mas voltados a novos projetos, investimentos e a tais demandas políticas. Tanto que o sistema Eletrobrás tem uma rentabilidade abaixo do custo de capital médio, enquanto os grupos privados têm uma rentabilidade enorme no mesmo sistema produtivo. Os consumidores cativos pagam as tarifas mais caras do mundo, ao passo que alguns grupos privados e comercializadores têm à sua disposição a energia mais barata do mundo.
Eis a contradição criada nesses oito anos de governo. Se não acontecer nenhuma tragédia - que é muito improvável, mas não inteiramente descartável -, a festa vai continuar.
Correio da Cidadania: E Belo Monte, uma das jóias da coroa do PAC, mas tão criticada e combatida por ambientalistas e movimentos sociais pelos impactos ambientas e sociais, vai entrar nessa festa também?
Ildo Sauer: Já está fazendo parte. Belo Monte é uma empresa concebida no governo militar e a essência do que se previu fazer naquele tempo foi executada agora. Assim como no rio Madeira, com as usinas Santo Antonio e Jirau, gestadas no governo FHC com a Furnas e a Odebrecht. Apenas partilharam uma das duas com outro grupo, pra não ficar tudo com a Odebrecht.
De forma que, concretamente, há o processo de submissão desse espaço econômico, dos recursos naturais e da estrutura empresarial estatal, ao interesse da acumulação capitalista dos grupos privados. É a essência do que vem sendo feito.
Tal lógica vale para o petróleo e por isso a afirmação de que o governo Lula é o que mais instrumentalizou, de maneira mais eficaz, com mais aceitação social, a submissão do espaço econômico dos recursos do Estado em favor da acumulação capitalista privada.
É o que está em jogo. É nesse sentido que vai minha afirmação, e de muitos outros, de que o Lula consolidou o capitalismo e instrumentalizou o Estado no Brasil.
Correio da Cidadania: Correm especulações de que serão tomadas medidas fiscais duras já nesse fim de mandato de Lula, para evitar desgaste de Dilma em início de gestão. O que pensa a respeito?
Ildo Sauer: Primeiro, é preciso ver que reformas são essas. Note que há reformas e reformas, e quem clama por elas quer reduzir direitos trabalhistas, sociais, previdenciários. É isso que está em jogo. São contra-reformas na verdade, o aprofundamento do modelo concentrador de privilégios e riquezas. É difícil avaliar, pois acho que o Congresso estará mais dócil, a não ser que a disputa pela partilha de cargos seja muito violenta.
Mas o governo o tem ao seu lado hoje, embora nenhum partido tenha significado. Ou seja, está tudo pulverizado e todos buscam uma fatia. De maneira que, se a partilha for promovida no estilo anterior, vai ter uma maioria pra fazer qualquer coisa no começo do governo. Vai ser mais fácil a aprovação de projetos no novo governo, tanto que já se cogita concluir o modelo do Pré-Sal depois. Isso porque do Congresso atual sobra pouco; os derrotados têm expectativa relativamente baixa e os reeleitos estão olhando o futuro. Assim, no início do governo, vão tentar colocar as principais questões na mesa e resolvê-las na medida em que se consolidam as promessas de entrega da barganha.
Não sei se me faço entender, mas é algo como "vamos fazer essa e essa reforma no começo e votá-las. À medida que vocês forem confirmando os votos, vamos confirmando o espaço no governo pra vocês". É um pouco jogo de gato e rato, porque ninguém mais confia em ninguém, uma desconfiança mútua generalizada.
Correio da Cidadania: Vão fazer troca de reféns.
Ildo Sauer: É uma boa figura de imagem, é o que está em jogo neste processo político.
Correio da Cidadania: Quanto a estas facilidades referidas do novo governo no Congresso, Chico de Oliveira, na entrevista ao Correio acima citada, afirmou também que as bancadas majoritárias, e agora aumentadas, da base governista nas duas casas farão o próximo governo mais conservador do que o de Lula. O que pensa a respeito de tal idéia?
Ildo Sauer: Creio que sim, porque será mais fácil trabalhar. E é preciso compreender o papel secundário que lamentavelmente o Congresso tem tido ultimamente, de mero carimbador. Grande parte da representação eleita se converte muito mais em despachante do interesse de grupos, muitas vezes com forte conteúdo econômico e até empresarial. Foram eleitos de forma genérica, com apoio de recursos e a profissionalização da campanha...
Nesse sentido, entendo que o Executivo detém o poder real. O Congresso é um espaço de legitimação formal da democracia, mas os grandes debates nacionais estão em outros campos há muito tempo (no campo econômico), os quais o Congresso apenas legitima. Seus líderes buscam um tentáculo, algum espaço em órgão de governo, acima de tudo alguma estatal, onde poderão nomear o despachante de interesses e mediar e proteger o jogo econômico dos grupos que os apóiam.
De maneira que novamente se manifestam as duas mãos. Acho que há uma figura de imagem muita apropriada do processo político do Brasil: o Second Life, ao qual já me referi, criado há algum tempo, em que o sujeito, além de cuidar de sua vida real, programa e vai comandando uma vida no computador. Eu temo que o típico agente político brasileiro tenha sua second life; uma pública, e a outra que fica nesse compromisso permanente, que não aparece, mas é com quem vive mais intensamente, o verdadeiro âmago do que ele faz: as articulações com o poder econômico. Ao mesmo tempo, tem a necessidade de aparecer diante de setores amplos da população como representante de algum interesse popular. Mas, na verdade, se expressa de um jeito ao público, enquanto, na articulação interna, inclusive em alianças interpartidárias na base do governo, busca avidamente nomear dirigentes de órgãos públicos, que por sua vez são colocados lá como mais que despachantes de interesse. Servem a essa correia de transmissão montada pra promover, de fato, a partilha daquele excedente econômico que cabe ao Estado e às empresas públicas gerirem. E as empresas de grande porte são muito visadas, porque direcionar contratos, organizar e legitimar esse processo é uma das tarefas. Tanto que grande parte da competência atribuída a dirigentes é a de ser o preposto político capaz de escapar dos órgãos de fiscalização e das áreas corporativas da empresa.
Inclusive, e de certa forma, isso é uma tragédia que diminui um pouco o alcance da Lei Ficha Limpa. Porque se, de um lado, ela surgiu de um sentimento público contra a prática de ilícitos contra a economia popular e o patrimônio público, por outro lado, grande parte dos dirigentes políticos terceiriza e nomeia despachantes para praticar tais atos. Eles não os cometem mais diretamente, pois têm seus prepostos para tal.
E ironicamente, em muitas corporações, já se criaram elites, que são como jogadores de futebol, cujo passe é comprado e vendido. São bem treinadas tecnicamente a serviço da nomeação política. Um exemplo notório foi com o ex-presidente Collor, cassado, capaz de ter um preposto, que nem conhecia de antigamente, que alugou o crachá de um técnico da Petrobrás para ser seu diretor da BR Distribuidora. É típico exemplo de como o alcance da Lei Ficha Limpa, efusivamente saudada, tem seu papel limitado, na medida em que a deterioração do papel político do Congresso, dos eleitos, faz com que estes não desempenhem papel direto, mas ‘apenas’ de influenciar diretamente, nomeando prepostos que nunca vão ser candidatos. Se forem pegos e condenados, o preposto lava as mãos. Esse é o processo político pós-mensalão.
Correio da Cidadania: O que acontecerá e como reagirá um futuro governo Dilma, e os movimentos sociais, caso uma nova crise econômica bata às nossas portas?
Ildo Sauer: Só vai ter recurso pra minorá-la, a não ser que bata profundamente e as contradições aflorem; aí pode ser difícil. Mas já passamos pela experiência do Jânio, de estilo voluntarioso, personalista, que renunciou; passamos pelo governo Collor, que tentou promover a partilha entre diferentes grupos econômicos, mas foi ejetado do processo, retornando agora nas asas do socialismo moreno e do caudilho do ABC... É difícil prever o grau de coesão e coerência. Enquanto houver o que partilhar no plano institucional e com os movimentos sociais...
A nova cartada que está na mão com o modelo do Pré-Sal é o poder autocrático e unilateral do presidente, que pode ouvir um conselho nomeado por ele e tomar a decisão de quanto vai produzir e como gerar as expectativas em torno disso. É um elefante na cartola da presidente eleita. Volto a olhar para o México, sendo importante lembrar que, no período de hegemonia da Pemex, o petróleo valia pouco - o excedente era pequeno, na diferença entre custo e preço, pois sua apropriação se dava em outras etapas, não na de produção, como agora. Portanto, acho que o grande coelho da cartola será sempre a partilha do Pré-Sal. No caso é trocadilho, já que o modelo de partilha permitirá... a partilha - não só entre governo e produtores, como também entre os vários produtores. É um recurso de que o governo dispõe pra manter a correia de transmissão andando.
Havendo uma degradação muito forte da chamada moralidade e probidade, já notoriamente degradadas, tal percepção talvez possa chegar às bases se a crise for muito violenta, sem que se consiga manter a pequena mão esquerda fazendo a redistribuição e um pouco de carícia. Talvez, a mão do Lula seja percebida por sua história; o pouco que ele dava aos pequenos provocava enorme sentimento de reconhecimento e esperança, o que talvez não venha pela outra mão.
É difícil fazer previsão do que vai acontecer numa crise. As conseqüências reais aqui dentro vão depender da capacidade da esquerda em se reorganizar em cima de uma nova compreensão do que está em jogo, numa clara plataforma de reformas possíveis no atual estágio de compreensão e mobilização política. Organizar, criar um movimento mais amplo, buscar espaço nos sindicatos e movimentos e recuperar seu espaço de atuação.
Aí, qualquer crise econômica lá fora vai se refletir numa possível mudança da trajetória política do Brasil. Do contrário, é mais do mesmo: mexicanização e justicialismo.
Correio da Cidadania: Pensando um pouco na nova equipe de governo, o que imagina da hipótese de a atual ocupante do cargo de diretora de Energia e Gás da Petrobrás (cargo no qual substituiu Ildo Sauer no segundo mandato de Lula), Graça Foster, ir para a Casa Civil?
Ildo Sauer: Entendo que a Casa Civil sob um José Dirceu era uma Casa Civil com conteúdo político, isto é, tinha um ator com densidade, que operava nas articulações, negociações, em detrimento da hegemonia do próprio presidente. Quem cumpriu à risca os ditames de ser operador em campo, de segurar a máquina estatal, dominá-la, quem negociava com grau de gentileza maior conforme a nobreza do interlocutor nos estamentos da Casa Grande, e tratava com rudeza o povo da senzala, isto é, funcionários públicos, de estatais, era a Dilma. Criou um estilo que é a antítese do que dizem os manuais de gestão, mas foi operativamente, do ponto de vista político, muito instrumental ao Lula, que ficou preservado, tendo alguém que lhe era fiel e operava todos esses campos da maneira descrita, tanto que ele acabou premiando-a com a candidatura e apoio, carregando-a na eleição com seu prestígio.
Para tal paradigma se repetir, talvez não seja impensável uma clone da ex-chefe da Casa Civil e atual presidente, no método e estilo, ocupando o espaço praticando os mesmos métodos. E seria alguém (Graça) ‘liberado’, de muito baixo conteúdo político, baixa densidade pessoal, sem história de liderança no partido, pois é um enxerto já da era da metamorfose petista plena, que chegou muito mais como operadora. Ter no seu entorno, para negociar as concessões aos demais partidos e grupos, alguém de mais densidade política talvez não seja a opção de quem quer manter a hegemonia, o comando a ferro e fogo. Melhor ter alguém que compartilhe sua personalidade, que execute a ferro e fogo o serviço necessário, para que a grande mediação seja feita pelo primeiro mandatário, que só intervém lá na frente, após mandar fazer as coisas.
Foi assim que operou o Lula no pós-Zé Dirceu. Ele estava confinado ao núcleo duro do partido, pois até 2005 quem mandava no governo era o núcleo duro do PT. Três ministros e um presidente que pensavam quase igual: o da Casa civil, o das Comunicações, o da Fazenda e o da Secretaria Geral de governo. Os quatro ministros originários da articulação histórica do partido chefiavam o governo, formando quase uma junta. Mas ela foi degolada e o príncipe emergiu sozinho. Passou a usar subalternos para domar a classe política em seu entorno e promover a partilha, o que tornou Dilma conhecida como gerente eficaz, na medida em que executava à risca os acordos, independentemente dos princípios em discussão. Impunha-os e salvaguardava a figura do presidente.
Esse é o modelo que está posto. Agora, vamos ver o superpríncipe – afinal, não há "rei morto, rei posto", há um muito ‘vivo’ que vai sobreviver - e depois também os comportamentos. Criador e criatura sempre têm conflitos.
Correio da Cidadania: Acredita que, conforme dita o padrão histórico, Dilma poderá se voltar contra Lula? Ou ela veio com a serventia de possibilitar a volta de Lula em 2014?
Ildo Sauer: Depende da conjuntura. A natureza intrínseca do processo levaria a uma possibilidade de afirmação definitiva de que Lula tem a última instância, o poder máximo. Só que exercê-lo às vezes exige uma conjuntura política, articulação, e de vez em quando há erros de avaliação.
A tendência natural seria essa. Mas ninguém aceita de bom grado ser um preposto ocupando o posto máximo. É estratégia de jogo de poder. É melhor ler Maquiavel pra explicar o que vem por aí, ele é capaz de explicar melhor que eu.
Correio da Cidadania: Lula, como os jornais noticiam, "sugeriu" a Dilma que mantenha Meirelles, Guido Mantega e o restante da sua equipe econômica em seus lugares. Dilma vai acatar as sugestões de Lula? No geral, o que o senhor espera da montagem do novo staff? Haverá um arco de líderes e ministros dos mais variados matizes, como fez Lula?
Ildo Sauer: Acho natural que sim. Aquilo que deu certo tem tudo pra ser mantido - a grande mediação. Assim como as questões do comando do governo, e de toque pessoal, de hegemonia interna, ou do comando da Casa Civil com alguém que seja um fiel executor de tarefas, mais do que um articulador de grande porte.
No restante, o governo tem de afirmar que ele vem para ser a continuidade do que já está aí. E, portanto, todos os compromissos com taxa de câmbio, juros altos, toda a lógica que prosperou e fez o que fez prosseguirá, de modo que não há muito a esperar com relação à mudança. Pode até trocar o nome do ator, mas o papel a ser exercido é o mesmo.
A partilha está aí na configuração de toda a equipe, tendo de ser um pouco ampliada, uma vez que o equilíbrio eleitoral é um pouco maior; são quase equivalentes PT, PMDB, PSB e os outros que estão lá, o que aumenta o poder de mediação do príncipe, ou da princesa, que em última instância é quem poderá arbitrar o dote que caberá a cada um.
Trata-se disso, partilha dos dotes. Este é o socialismo! Não o que criamos desde os anos 80, na fundação do PT. Trinta anos depois, vemos o socialismo: a socialização dos espaços do governo entre os grupos políticos, que por sua vez estão lá subservientes a interesses em geral empresariais, do capital, não ao que diz o discurso, voltado aos movimentos sociais. A eles, as migalhas.
Correio da Cidadania: Diante do quadro geral aqui traçado, qual a sua opinião quanto ao apoio que a candidata petista acabou por angariar junto à esquerda e aos movimentos sociais - estes mesmos que partilham as migalhas! -, especialmente no segundo turno? Acredita que fará algum jus a este apoio?
Ildo Sauer: Vendo que ambos, PT e PSDB, são muito parecidos, e com a imagem histórica do PSDB claramente vinculada ao neoliberalismo, apesar da trajetória de Serra - digamos que ele era a esquerda da direita, enquanto a Dilma a direita da esquerda -, havia pouca clareza para a esquerda e os movimentos sociais.
À medida que o Serra assumiu uma agenda conservadora de direita, não deixou espaço aos movimentos sociais que se vêem como esquerda, a não ser se vincular à mão esquerda do Lula, deixando de olhar a mão direita, que também estava lá. Agarraram-se à mão a esquerda do Lula, sem se perguntarem o que a mão direita, a hegemônica, fará depois.
Portanto, creio que no tabuleiro político faltou um pouco de percepção do xadrez, dado que propostas e práticas são muito parecidas. Aqueles que foram para a candidatura do PSOL ou ambiental no primeiro turno, ou anularam ou se dividiram no segundo; um pouco mais para o Serra, mas não o suficiente para consolidar a vitória eleitoral, mesmo com pouco mais de 40% dos votos do eleitorado. Grande parte dos movimentos optou por tapar as narinas e votar na candidata herdeira de uma história de esperança, especialmente porque o discurso exageradamente conservador do candidato tucano assustou. De certa forma, ele encurralou essas correntes entre a Dilma e o voto nulo.
De qualquer maneira, evidencia-se um imenso vazio político. Falo assim apesar da agenda verde e nova no 1º. Turno, mas com baixo conteúdo social para responder aos anseios nacionais, e do discurso socialista, que não conseguiu se sustentar, em parte porque as regiões que mais se beneficiariam de tal discurso ainda estão prisioneiras do discurso da esperança e da mudança que vem da construção do PT. Uma construção que só agora, após uma longa onda de 20 anos, chega lá, onde talvez só chegue o discurso, porque nas práticas só temos tênues mudanças.
O Bolsa Família, por mais necessário que fosse para extirpar a fome, que grassava, não é suficiente como processo político de criação de autonomia, participação efetiva, tornando os brasileiros mais iguais; ao contrário, aprofunda e cristaliza uma situação social e política inaceitável. Como instrumento de arrancada, é necessário. No entanto, cristalizá-lo cria uma situação política de dependência permanente do paternalismo, outra coisa invocada nessas eleições, de um lado pelo conservadorismo e de outro pelo populismo paternal e agora maternal.
E veja como é contraditório: afirma-se uma mulher presidente como inovação, ao passo em que ela é apresentada como uma mãe, herdeira de um pai maior, criando não afirmação da independência, autonomia e igualdade entre mulheres, homens, regiões etc., mas aprofundando uma relação de dependência, herdeira de uma sociedade injusta, contra a qual foi criado um partido e muitos movimentos sociais. Eis o quadro.
Correio da Cidadania: Finalmente, ainda acredita em um projeto democrático-popular para o Brasil, nos moldes antes pregados, e abandonados, pelo PT, ou imagina que este seja um caminho que se tenha esgotado, devendo ser substituído por um outro projeto de nação?
Ildo Sauer: Eu acho que o PT tal como criado não existe mais. É um partido convencional que busca tirar o máximo possível da herança memorial de esperança, ainda retendo em suas prisões, seqüestrado, o imaginário de mudanças dos movimentos sociais, com um discurso longa e arduamente construído, ainda que grande parte dos precursores hoje esteja longe. Aqueles que se apoderaram deste patrimônio de mobilização social ainda vão querer tirar o máximo de proveito. Como seus escrúpulos já não eram muitos antes, certamente não terão os mínimos agora, depois da metamorfose, buscando arrancar o máximo dessa etapa, que os próprios vêem como os estertores de um projeto que começou cheio de sonhos, solidariedade, esperança, transformação, e virou uma disputa quase igual à da Noite dos Cristais, dentro e fora do partido.
Temos de fazer uma autocrítica. Muitos de nós partilhamos tal projeto, em detrimento de um outro mais ortodoxo, de exame das reais contradições que habitavam a sociedade brasileira, conseguindo estruturar movimentos sociais capazes de compreender estas contradições e articular um poder real. Um poder em que os líderes que ajudaram nas formulações e se afirmaram no debate dentro das bases fossem os líderes do projeto, criando estruturas orgânicas fortes e indissolúveis, capazes de chegar ao poder e exercê-lo.
Fizemos o contrário: delegamos a agentes simbólicos, com baixo grau de comprometimento, uma agenda real de esquerda. E que puderam, nessa estrutura tênue de correias de transmissão, de laços de cobrança, numa estrutura de partido com forte inserção social, fazer tudo que vimos. E a figura principal foi a cabeça do projeto, que tinha um grande legado histórico, simbólico. Como disse alguém um dia, "a qualquer chefe de esquerda lhe falta o dedo, perdido por um operário na fábrica". Isso é altamente simbólico. Para qualquer líder de esquerda ocupar um lugar hegemônico, vai lhe faltar o dedo perdido na labuta operária. Esse forte simbolismo não se traduziu em compromissos concretos, com a compreensão das contradições da sociedade.
É muito simbólica a afirmação do presidente da República de que ele "chegou lá". Parece que é um Pelé, um jogador ou modelo que chega longe na carreira. Como se fosse possível ter 190 milhões de Pelés, 190 milhões de Lulas, 190 milhões de Giseles Bündchen no Brasil, como se a estrutura social permitisse.
Esse grau verbalizado no discurso mostra claramente a ausência de compromisso com a realidade das contradições dentro do âmago da sociedade brasileira, que é a estrutura social de produção e distribuição do produto social entre os grupos da população. Isso é que precisa ser rearticulado: aumentar as forças produtivas, produzir mais e garantir que a distribuição seja melhor. Mas não se leva a cabo tal tarefa com populismo, assistencialismo, paternalismo, maternalismo, pra onde tudo descambou.
É a autocrítica que faço. Muitos intelectuais participaram do processo e, embora tendo uma compreensão maior, acabaram delegando poder. O símbolo maior foi o sindicalismo. Toda a base, que tinha um baixo entendimento do significado político do que estava em jogo, preferiu depois se servir do espaço de poder e dessa nova partilha com o sistema econômico dominante. E se subordinou a esse capitalismo, aqui no Brasil dependente, mas com um pouco mais de autonomia hoje em dia pela nova inserção internacional do país, criando até asas para um sub-imperialismo na África e América Latina.
Foi o que fizemos, creio que deva ser essa a autocrítica. A estrutura partidária tênue que o PT representava, com facções e diversos grupos, permitiu que quem mais lançasse asas às alianças com a burguesia se tornasse a articulação hegemônica, terminando por desempenhar todo esse papel. É um aprendizado duro, mas vamos ver o que emerge daqui em diante.
Meu último lampejo de esperança é que tudo que disse nesta entrevista não seja verdadeiro. Lá no fundo ainda sobra um pouquinho, um milionésimo, de esperança de que não seja.

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Congresso quer aumentar o próprio salário e o de Dilma

Com a volta dos trabalhos no Congresso, deputados e senadores já defendem aumentar os próprios salários e, de quebra, reajustar também o da presidente eleita, segundo informa a reportagem de Andreza Matais e Fernanda Odilla publicada na edição desta terça-feira da Folha e disponível na íntegra para assinantes do jornal e do UOL.

O "pacote de bondades" planejado pelos congressistas surge no momento em que Dilma orientou sua equipe de transição a tentar barrar no Congresso reajustes para o funcionalismo que impliquem em rombo no Orçamento de 2011.

Eles alegam que os salários do Executivo e do Legislativo estão sem aumento há cerca de três anos e que a inflação no período foi de 17,8%, mas por ora não falam em percentuais.

Para diluir o desgaste político que o aumento pode gerar, os congressistas insistem em mostrar que essa defasagem também ocorre nos salários do Executivo. Eles defendem a vinculação do reajuste do Legislativo ao de Dilma e dos demais ministros de Estado.

Como presidente, ela vai receber menos da metade do que ganhava quando era ministra do governo Lula, período em que aumentou seus rendimentos participando de conselhos de administração de empresas públicas

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Brasil continua sendo vendido à estrangeiros



José Mesquita
Amazônia, Ambiente & Ecologia, Brasil, Da série "Acorda Brasil", Desmatamento


Estrangeiros compram 22 campos de futebol por hora
Do final de 2007 ao início deste ano, foram adquiridos 1.152 imóveis rurais
AM e Minas concentram 60% do total das terras compradas por pessoas físicas e jurídicas de outros países no período
Empresas e pessoas de outros países compram o equivalente a 22 campos de futebol em terras no Brasil a cada uma hora.
Em dois anos e meio, os estrangeiros adquiriram 1.152 imóveis, num total de 515,1 mil hectares.
A Folha comparou registros mais recentes feitos entre novembro de 2007 e maio de 2010 pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que leva em conta as aquisições de pessoas e empresas de outros países.
Na tentativa de conter a “invasão estrangeira”, o Incra também regula compras e arrendamento de terras feitos por empresas com sede no Brasil, mas que são controladas por estrangeiros.
“Não é xenofobia.
Agora temos regras que trazem estabilidade jurídica e potencializa o combate à grilagem”, afirma o presidente do Incra, Rolf Hackbart.
“Além disso, as medidas não afastam investidores, porque o Brasil não deixou de oferecer rentabilidade”, completa o presidente da autarquia federal.
Fernando Odilla/Folha de S.Paulo

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Linhagens do pensamento político brasileiro (II)

Gildo Marçal Brandão (*)
La Insignia, julho de 2007.

Formas de abordagem

Posta a questão desta maneira, fica claro que o caminho escolhido não poderia ser o da biografia, fosse ela escrita em chave psicológica ou em intelectual; nem o da sociologia, seja a dos intelectuais ou a de suas instituições; nem o da história das mentalidades, com o seu enfoque nas atitudes, comportamentos e representações coletivas inconscientes. Do ângulo que aqui interessa, a chave do problema não está em saber se o autor X ou Y era aristocrata de nascença, parvenu ou membro da oligarquia decadente em busca de reclassificação social, pois embora isso tenha que ser levado em conta, não explica por si uma estrutura teórica, uma obra de arte ou um problema científico; na verdade, não cabe explicar a qualidade ou a especificidade de um pensamento político ou produto literário pela evocação da "origem de classe" de seu autor. E ampliando, em nenhum momento a produç ão intelectual será lida como reflexo ideológico de grupo social preexistente - como se pudesse existir uma "classe", historicamente identificável pelo lugar que ocupa no processo de produção, e depois a sua "consciência" ou a sua "visão de mundo" (23).

Não se trata, tampouco, de reduzir idéias e modos de pensar às estratégias micropolíticas das coteries as quais conferem eventualmente identidade institucional; sequer de concentrar o foco na miríade de obras medianas pelas quais determinada compreensão das coisas se refrata e se propaga, embora o exame delas seja certamente necessário para explorar todas as variáveis, compor e hierarquizar o quadro. Não desconheço, por certo, que idéias não se transformam em ideologias ou mesmo em formas de pensamento sem que sejam submetidas a processos mais ou menos sistemáticos de rotinização, nos quais autores habitualmente considerados secundários e obras logo esquecidas desempenham papéis fundamentais. Mas, por isso mesmo, convém ter em mente que vale para os processos intelectuais aquilo que Gramsci individualizou em sua nota sobre o "número e a qualidade do sistema representativ o": neles o que se mede é "exatamente a eficácia e a capacidade de expansão e de persuasão das opiniões de poucos, das minorias ativas, das elites, das vanguardas etc., etc., isto é, sua racionalidade ou historicidade ou funcionalidade concreta" (24). Nessas condições, não há como fugir do suposto segundo o qual as obras mais significativas, os textos fundamentais, as criações teóricas mais típicas são mais capazes - porque mais coerentes, mais amplas, mais profundas e mais autônomas - de revelar a natureza de uma época e a consistência de uma concepção política, de permitir aos homens a tomada de consciência do que fazem e de extrair todas as implicações de sua própria situação. Nesse sentido, é exemplar a reação provocada pela leitura de Formação Econômica do Brasil em Oswaldo Aranha, relatada pelo próprio Celso Furtado. "Celso, você me explicou o sentido do que fizemos nessa época; então eu não sabia de nada" (2 5). A análise, é claro, destaca apenas um aspecto específico de um conjunto mais vasto, mas a perspectiva mobilizada permitirá interpelar as idéias de determinados autores - aí sim, sem reducionismos - como momentos da constituição de atores específicos, como tentativas de diagnosticar e resolver problemas reais, de dirigir política e culturalmente a ação de forças sociais determinadas.

Com Löwy, em nenhum momento estou sugerindo que análise desse tipo seja incompatível com o reconhecimento do papel determinante das condições econômicas e sociais. Mas reconhecer essa compatibilidade não implica supor que idéias e formas estejam em conformidade direta com o desenvolvimento geral da sociedade, possam ser dissolvidas em seus contextos (políticos, econômicos ou mesmo lingüísticos), reduzidas a movimentos políticos conjunturais, descritas necessariamente como homólogas aos grupos sociais ou às instituições onde nascem. Claro, formas e idéias não caem do céu, não governam o mundo, não podem ser pensadas a qualquer momento nem em qualquer contexto histórico, estão enraizadas nas condições materiais de vida, são - para usar a feliz formulação de Carlos Nelson Coutinho - "expressões condensadas de constelações sociais, meios privilegiados de reproduzir espi ritualmente as contradições reais e, ao mesmo tempo, de propor um modo novo de enfrentá-las e superá-las" (26). Por isso mesmo, não podem ser tomadas isoladamente, correlacionadas caso a caso com eventos, grupos ou fenômenos sociais; são antes resultantes, traduzem relações existentes entre grupos no interior da sociedade global, são momentos não apenas constituídos, mas constituintes dessas relações - sem contar que quando realmente significativas sobrevivem aos seus contextos de origem, são universalizáveis e podem ser interpeladas a partir de outras condições e perspectivas. Como observa Marx,

"a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopéia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem ainda um prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis." (27)

Por isso mesmo, em um trabalho exploratório como este, o caminho mais seguro é ir das idéias e das formas ao social - na verdade, tomar as formas como cristalizações do social, decantações da experiência - sob pena de introduzir na análise pressupostos deterministas e de cancelar a priori a riqueza das mediações (28). Do mesmo modo, não se trata de riscar linhas retas entre ideologia e forma de pensar, interpretação do país e linha política que dela possa ser "deduzida", de julgar que, dada esta teoria segue-se aquela política - até porque tais relações estão longe de ser diretas e unívocas. Na verdade, o significado que uma teoria, idéia ou interpretação acaba adquirindo, mesmo no contexto em que foi produzida, nem sempre coincide com a intenção de quem a formula e com o público que a acolhe. Por mais sistemático e coerente que um conjunto de idéias seja, seu desenvo lvimento jamais é inteiramente imanente, mas sempre em resposta a problemas reais; ele não apenas se presta, dentro de certa margem de tolerância, a atualizações e reconstruções, como pode dar margem a diferentes políticas - a não ser que aceitemos a metodologia stalinista segundo a qual o traidor e a traição estavam em germe no desviante desde criancinha, ou essa profecia retrospectiva que toma ação e teoria "condenáveis" hoje como o produto necessário do que o indigitado escreveu 30, 40 anos atrás. Se for assim, é claro que o sentido - progressivo ou regressivo - de cada particular expressão do conservantismo, do liberalismo, do socialismo liberal ou do comunismo, não existe em si mesmo, só pode ser estabelecido em função da natureza dos problemas postos pela sociedade em um determinado momento de seu desenvolvimento, e da capacidade de seus portadores de dar respostas à altura tanto desses dilemas históricos como das exigências do dia .

Nada disso impede, no entanto, o reconhecimento das determinações mais gerais a que chegou o processo ideológico brasileiro, a detecção não apenas do, digamos, liberalismo em geral, mas das determinações mais gerais do liberalismo ou do conservantismo tal como eles se desenvolveram no Brasil, o destaque do que há de comum entre diferentes manifestações históricas da mesma orientação básica. É evidente que esse caráter geral, "este elemento comum que se destaca através da comparação, é ele próprio um conjunto complexo, um conjunto de determinações diferentes e divergentes" (29). O intuito, claro, é demarcar a existência, no plano das idéias e das formas de pensar, de continuidades, linhagens, tradições, o que, convenhamos, não é de pouca monta em um país em uma historiografia (e autores prestigiosos!) que insistem em dizer - a seco, com tristeza, ou ironicamente, o efeito é o mesmo - que a vida intelectual nunca deixou de ser o passatempo de senhores ociosos, que nunca houve conservadorismo entre nós porque nesse campo não há pensamento, o liberalismo foi sempre de fachada, o socialismo não passou de amálgama entre positivismo e estupidez, etc.

Com todas essas ressalvas, penso que o recorte acima proposto é pertinente. Posta a hipótese, eis o corolário: tendo como matéria a "imundície de contrastes" de que falava Mário de Andrade - pois, "como sucede com todos os outros povos americanos, a nossa formação nacional não é natural, não é espontânea, não é, por assim dizer, lógica" (30)-, nem por isso a vida ideológica brasileira é aleatória; faz, ao contrário, sistema e sentido, embora seja (ou tenha sido) descontínua, sujeita à ciclos de substituição cultural de importações que, por vezes, parecem fazer tabula rasa de todas as anteriores configurações. Qualquer que seja a consciência de sua própria história, ou o grau em que reconhecem os seus próprios ancestrais, suas principais correntes não nasceram ontem e não se explicam apenas em função das conjunturas. Se for assim, então a reflexão sobre essa hi stória e seus ciclos intelectuais pode ser uma boa porta de entrada para compreender e explicar a natureza e os limites dos projetos políticos que buscam hoje dirigir os processos de reconstrução do capitalismo brasileiro, de aprofundamento ou contenção da democracia política, e de inserção autônoma ou subalterna do país no movimento do mercado mundial.


Formas de pensar

Ora, qualquer tentativa de definir a visão do país e o programa político da corrente conservadora brasileira - que foi responsável no século XIX pela construção do Estado e pela manutenção da unidade territorial, forneceu no século XX a diretriz básica da ação dos grupos políticos e das burocracias dominantes no país (do tenentismo e do primeiro varguismo ao geiselismo, de Agamenon Magalhães a Antonio Carlos Magalhães), e cuja origem intelectual remonta em boa medida ao visconde de Uruguai e a Oliveira Vianna (31); -reconhecerá que eles se assentam na tese de que não é possível construir um Estado liberal (e democrático) numa sociedade que não seria liberal. Sua conseqüência prática é que esta precisa ser tutelada e a centralização política e administrativa afirmada. A imagem do Brasil que emerge do pensamento conservador, é a de que esse é um país fragmentado, at omizado, amorfo e inorgânico, uma sociedade desprovida de liames de solidariedade internos e que depende umbilicalmente do Estado para manter-se unida. Nesta terra de barões, onde "manda quem pode, obedece quem tem juízo", o homem comum só costuma encontrar alguma garantia de vida, liberdade e relativa dignidade, se estiver a serviço de algum poderoso. Fora disso, estará desprotegido - a não ser que o Estado intervenha. Ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, aqui o Estado não deveria ser tomado como a principal ameaça à liberdade civil, mas como sua única garantia.

Criticando os liberais por sua cegueira diante da realidade e pela tentação de transplantar as instituições de além-mar, Oliveira Vianna sugere que nessa sociedade de oligarquias "broncas", a democracia política constitui a grande ilusão. Seu aparato institucional pesado, lento, ineficiente e corrupto, não dá conta dos dinamismos e desafios do mundo moderno, sua subserviência ao sufrágio universal e aos partidos - que não passam de quadrilhas irmanadas contra o bem comum -, apenas entrega o Estado de pés e mãos atados aos interesses privatistas e aos coronéis, sua crença no poder local promove as curriolas e sumidades de aldeia. Seria importante, em conseqüência, retomar a obra centralizadora dos "reacionários audazes" do Império. Tratar-se-á de educar as elites, evitar a luta de classes, dar prioridade à construção da ordem sobre a liberdade, dar independência ao Judiciá rio, limitar as autonomias estaduais, organizar a população por meio de corporações, e construir uma sociedade civil (civilizada) por meio da ação racional de um novo Estado centralizado. E só depois - se é que haveria um depois! - admitir a democracia política. Paradoxalmente, vale aqui a boa ordem européia: só depois de garantida a liberdade civil é que deveríamos nos lançar à construção da política.

A predominância da autoridade sobre a liberdade resultaria também, e principalmente, da inorganicidade e atomização da sociedade: sem um Estado forte, tecnicamente qualificado, imune à partidocracia e à política dos políticos, capaz de subordinar o interesse privado ao social, controlar os efeitos diruptivos do individualismo possessivo, do mercado, etc., ambas não sobrevivem. Além disso, num território cuja geografia conspira contra a política, a nação só tem chance sobre os escombros da federação. Liberdade civil, unidade territorial e nacional garantida pela centralização político-administrativa, e Estado autocrático e pedagogo, eis o programa conservador.

Do lado liberal, trata-se de buscar, como na Nova Inglaterra, "o maior progresso de sociedade pela maior expansão da liberdade individual" (32), o que, no caso de país paradoxal como o nosso exige um projeto claro de reconstrução do Estado, sem o qual esta não se implementa. Todo o dilema tem a ver com a distinção entre centralização política e descentralização administrativa num país que sempre teve dificuldades em separá-las, com as relações que devem ser estabelecidas entre o poder central e os poderes provinciais a serem revigorados, entre as instituições eletivas e as nomeadas, entre um Legislativo soberano de um lado e um Executivo responsável de outro, com o papel que deve caber a um Judiciário forte numa ordem política encimada por um - explícito, como no Império, ou implícito, como em quase toda a República - Poder Moderador. Nesta ótica, a questão determinante é, pois, a da forma do governo, sem cuja resolução a democracia brasileira continuará um lamentável mal-entendido.

Tanto quanto os "idealistas orgânicos", o "idealismo constitucional" dos liberais afirma a centralidade do papel do Estado na formação social brasileira, com a radical diferença de que para os primeiros é o caráter inorgânico da sociedade que põe a necessidade de um Estado forte que a tutele e agregue, enquanto para os segundos, é a presença do Estado todo poderoso que sufoca a sociedade e a fragmenta. Aqui, a nefasta independência do Estado perante a sociedade civil - o nascimento do Estado antes da Sociedade Civil, seu predomínio abusivo, a fatalidade dos indivíduos e grupos sociais que vivem do e pelo Estado - parece ser não um resultado das condições de ocupação do território, da dispersão geográfica dos grupos humanos e das escolhas a contrapelo das elites políticas fundadoras do Império e da Segunda República, como entende a estratégia analítica dos organicistas, ma s um pressuposto que se assenta na história interna da metrópole, na transmigração oceânica do Estado português e na reiteração severa e avara da cultura das origens (33).

Feito esse diagnóstico e a crítica do Estado brasileiro (e da cultura política cartorial que ele gera) do ponto de vista, digamos, da "sociedade civil" manietada, a estratégia constitucionalista - seja ela reformista como nos revoltosos mineiros e paulistas de 1842, federalista como em A Província, revolucionária, como na primeira edição de Os Donos do Poder, e mesmo radical conservadora como no programa de reformas neoliberais da década de 1990 (que evidentemente abandona vários preceitos do liberalismo clássico, como os que particularizam Tocqueville, Stuart Mill, Tavares Bastos ou Joaquim Nabuco) - está voltada para restringi-lo ao necessário para que a "autonomia" daquela sociedade se afirme, isto é, para que as dialéticas entre liberdade individual e associativismo, entre representação e opinião pública, entre interesse privado e nacional possam fluir - e a sociedade global possa, enfim, ser reconstruída.

O que faz a peculiaridade "idealista constitucional" dos liberais é, entretanto, e como notou Oliveira Vianna, a preocupação com as formas, a confiança no poder da palavra escrita, a crença em que a boa lei produziria a boa sociedade, a idéia segundo a qual os problemas do país são fundamentalmente políticos e institucionais, e só serão resolvidos por meio de reformas políticas, a insistência em que, na ausência destas, reformas econômicas e sociais não seriam possíveis ou não se sustentariam. Dito de forma positiva, a categoria chave da estratégia liberal é a da "construção institucional", historicamente cumulativa (34). Não cabe, por isso mesmo, aceitar a priori o adjetivo "utópico" que Oliveira Vianna (e uma longa tradição que apoda os liberais) pespega como sinônimo de "constitucional", não só por considerar que o utopismo não é prerrogativa destes, como também por supor que o "idealismo orgânico", hegemônico na maior parte da história política monarquista e republicana, não sobrevive aos próprios critérios que servem para condenar os "constitucionais": nas próprias palavras daquele autor, "a disparidade que há entre a grandeza e a impressionante euritmia de sua estrutura e a insignificância de seu rendimento efetivo" (35).

Coerente com os seus pressupostos, o liberalismo brasileiro - monarquista ou republicano - toma a questão da representação como decisiva, propõe o federalismo (eventualmente) e o parlamentarismo, reconhece a necessidade de um Executivo forte, defende a independência e o papel de árbitro constitucional do Judiciário, em cuja aristocracia deposita boa parte de suas esperanças de preservação da liberdade, e pensa a ação e a organização da vida política como um espaço cujo centro é o Parlamento, que deveria funcionar como uma espécie de tribunal, no qual a verdade ou o melhor resultado emerge por meio da exposição dos argumentos e réplicas, do choque agônico e não antagônico de interesses, e das prudentes composições entre as partes, todas supostamente livres e autônomas em relação ao mundo exterior, e movidas essencialmente pela preocupação em promover o bem público (36 ).

De todos esses aspectos, o federalismo talvez tenha sido o menos compartilhado. Não apenas a questão da representação, reconhecendo-se a estrutura unitária do Estado, pesa mais, como poucos intérpretes do Brasil se deixaram por ele empolgar. Esporadicamente, o federalismo se converteu em tema de pesquisa científica, como agora, impulsionado pela crise do Estado e do regime presidencialista, e pela guerra fiscal no quadro da Constituição de 1988. Entre os que pensaram o país, a grande exceção, é claro, é Tavares Bastos, e com ele, toda a corrente abolicionista - Nabuco, Rebouças, Ruy - que postulou uma monarquia federativa como forma de fazer a abolição e salvar a monarquia; derrota a qual não faltou a marca das tragédias pessoais (37). A opção mais radical talvez tenha sido a de Ruy, seja por ter percebido antes dos demais a incompatibilidade entre Monarquia e Federação, sej a porque esta era mais importante do que a República, a ela aderindo somente quando se convenceu que a monarquia não a implantaria.

Se raro foi o federalismo como reflexão e ideologia, a federação "é um fenômeno do nosso passado todo", como disse Nabuco ao propor em 1885 a bandeira ao Partido Liberal e ver-se ridicularizado por este; por isso mesmo, ele esteve subjacente à política brasileira seja como aspiração autonomista (como em Frei Caneca ou nos Farrapos -38-), e até separatista (como em Alberto Salles, para quem a separação era o ponto de partida de um processo cujo fim era a federação -39-), de elites regionais, seja como instrumento de contenção do autoritarismo do Estado (como nas lutas anti-ditatoriais do século XX). De fato, ao lado do medo pânico diante das revoltas plebéias e pelo risco que poderia representar à preservação da escravidão, ele foi um dos fantasmas políticos por trás da opção dos pais fundadores pelo Estado unitário e centralizado, quando a geografia e a administração descentralizada dos séculos precedentes (pelo menos até a civilização das minas gerais e a experiência pombalina) apontavam noutra direção; opção tornada definitiva pelos "reacionários audazes" que trataram a pontapés as revoltas regenciais sempre que elas ameaçaram transbordar os limites do conflito intra-elites; e reinventada pelas políticas industrializantes - e pelas duas ditaduras - que moldaram boa parte do Brasil moderno.

O federalismo, entretanto, jamais foi via de mão única, seja porque abraçado por diferentes grupos sociais e interesses, seja porque o seu sentido - progressivo ou regressivo - variou segundo as conjunturas históricas, isto é, de acordo com a natureza dos problemas postos na ordem do dia. De qualquer maneira, seja conectada à orientação com a qual foi historicamente confundida - quando a defesa da descentralização ou da federação se confundia com os interesses das oligarquias regionais -, seja recuperada pelo que representa de promessa de pluralidade e de elemento de negação da via prussiana de desenvolvimento capitalista que acabou se efetivando, a bandeira federalista parece condenada a reencarnar ciclicamente, vale dizer, em toda conjuntura crítica que coloque em tela o contrato social, a reformulação do arranjo de poder do país. Talvez por isso mesmo, sua influência, ainda q ue débil, não tenha se limitado ao campo liberal estrito senso, tornando-se peça central, por exemplo, da reflexão de Celso Furtado, segundo Chico de Oliveira o único dos "intérpretes do Brasil" a levá-la a sério, ao arquitetar um "federalismo regionalizado cooperativo" como instrumento para impedir a exclusão do Nordeste e evitar a implosão da nação pela radicalização de suas disparidades internas; e da corrente comunista paulista do "poder local", que na década de 1960 e com base numa releitura do papel dos estados na Revolução de 1930 e no Golpe de 1964, confrontou o unitarismo e o antiliberalismo do prestismo e da esquerda que aderia à luta armada, propondo ao invés o longo caminho das instituições, isto é, uma estratégia eleitoral de cerco do poder central pela conquista de prefeituras dos centros metropolitanos e de governos dos principais estados (40).


Notas

(23) Neste ponto, a referência fundamental continua a ser E. P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa. Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987, vol 1, p. 9.
(24) Cf. Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Trad, Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2000, vol. 3, p. 82.
(25) Cf. a intervenção de Celso Furtado na mesa redonda "A Revolução de 30 em perspectiva: Estado, estrutura e poder e processo político", in A Revolução de 30: Seminário Internacional. Brasília: Editora da UnB, 1983, pp. 716-717. A citação completa é: "O controle de câmbio não surgiu de uma escolha e sim da necessidade de sobreviver face à brutal baixa da entrada de divisas. Ninguém queimou café por masoqui smo e sim para reduzir os imensos gastos de armazenagem e a pressão dos estoques sobre o mercado internacional. Ninguém dirá que José Maria Whitaker, o ministro da Fazenda da época, tinha idéias econômicas diferentes das de Murtinho, como também não demonstrara tê-las Getúlio Vargas quando ocupara a pasta da Fazenda do governo Washington Luís. Evidentemente, as mentes menos dogmáticas, menos formadas ou deformadas pelas idéias ortodoxas sobre equilíbrio orçamentário, inflação etc., tenderam a prevalecer. Anos depois tive com Oswaldo Aranha uma conversa sobre esses acontecimentos e ele me observou: 'Celso, você me explicou o sentido do que fizemos nessa época; então eu não sabia de nada'".
(26) No prefácio à Cultura e Sociedade no Brasil. Ensaios sobre idéias e formas. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000, 2ª. ed. revista e ampliada, p. 9.
(27) Na "Introdução de 1857" à Crítica da Economia Política. In Manuscritos E conômico-Filosóficos e outros textos escolhidos. Trad. José Arthur Giannotti e Edgar Malagodi. Col. Os Pensadores, n. XXXV. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 131.
(28) Cf. Jean Ehrard, "Historia de las ideas e historia social em Francia em el siglo XVIII: reflexiones de método". In Louis Bergeron (org.), Niveles de Cultura y Grupos Sociales, México: Siglo XXI,1977, p. 181-184.
(29) Marx, op. cit. p. 110.
(30) Na sua conferência de 1942. Em Aspectos da Literatura Brasileira (1943). São Paulo: Livraria Martins Editora S. A., 1978, 6ª. ed., p. 8.
(31) Cf. "Ensaio sobre o Direito Administrativo" (1862). In Visconde de Uruguai. Org. e Introd. de José Murilo de Carvalho. Col. Formadores do Brasil. São Paulo: Editora 34, 2002. Além da apresentação de José Murilo, outra cuidadosa análise do pensamento do visconde pode ser encontrada em Gabriela Nunes Ferreira, Centralização e Descentralização no Império - O debate entre Tavares Bastos e visconde de Uruguai, São Paulo: Editora 34/DCP-USP, 1999.
(32) A C. Tavares Bastos, Os Males do Presente e as Esperanças do Futuro (1862). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, 2a. ed., pp. 31-32.
(33) Cf. Idem, ibidem, pp. 29s. No mesmo sentido, Os Donos do Poder, op. cit..
(34) Cf. Bolívar Lamounier, "Rui Barbosa e a construção institucional da democracia brasileira", in Rui Barbosa. Ensaio de Bolívar Lamounier e fotografias de Cristiano Mascaro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
(35) Em O Idealismo da Constituição, op. cit., pp. 10-11; grafia atualizada. Nesse sentido, ver a nota "O fracasso dos conservadores", publicada em Política Democrática, Ano I, n. 1. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, jan./abr. de 2001
(36) A defesa clássica dessa forma de ver a política é, como se sabe, dessa figura complexa e contraditória que é Edmund Burke, em seu "Spech to the electors of Bristol" (1774), in Miscellaneous Writings, Select Works of Edmundo Burke, vol. 4, ed. Francis Canavan. Indianapolis: Liberty Fund, 1999. Talvez seja o caso do chamar a atenção para a similaridade com o modelo habermasiano. Cf., por exemplo, Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. Para uma caracterização negativa do "governo pela discussão", ver Carl Schmitt, The Crisis of Parliamentary Democracy. Trad. Ellen Kennedy. Cambridge, MA: The MIT Press, 1992, 3a. ed.
(37) Sobre Tavares Bastos, cf. Walquíria G. Domingues Leão Rego, A Utopia Federalista. Estudo sobre o pensamento político de Tavares Bastos. Maceió: EDUFAL, 2002; e o livro de Gabriela Nunes Ferreira, já citado.
(38) Cf. Denis Antonio de Mendonça Bernardes, O Patriotismo Constitucional: Pernambuco, 1820-1822. Tese de doutorado defendida no Departamento de História da USP, São Paulo, 2001. E Evaldo Cabr al de Mello, A Outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004. Moacyr Flores, Modelo Político dos Farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, 2ª. ed. E Sandra Jatahy Pesavento. A Revolução Farroupilha. São Paulo: Brasiliense, 1990, 3ª. ed. , entre outros.
(39) Cf. A Pátria Paulista (1887). Brasília: Editora da UnB, 1983. Influenciado por Spencer, Salles vê a federação não apenas como um arranjo artificial, uma construção política, como nos federalistas norte-americanos, mas como uma lei biológica que regula as complexas funções dos organismos. Ver, nesse sentido, o seu "Catecismo republicano" (1885), republicado como apêndice ao livro de Luiz Washington Vita, Alberto Sales - Ideólogo da República. Col. Brasiliana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, especialmente pp. 191-195.
(40) Cf. Francisco de Oliveira, A Navegação Venturosa. Ensaios sobre Celso Furtado. São Pau lo: Boitempo Editorial, pp. 80-81 passim. Sobre as concepções políticas de Celso Furtado, ver Vera Alves Cepêda, "O Pensamento político de Celso Furtado: desenvolvimento e democracia". In Luiz Carlos Bresser Pereira e José Márcio Rego (orgs.), A Grande Esperança em Celso Furtado - Ensaios em homenagem aos seus 80 anos. São Paulo: Editora 34, 2001. Tratei da corrente comunista numa comunicação apresentada no XIII Encontro Anual da ANPOCS, em 1989, "O Poder Local: O PC às vésperas da cisão marighellista", mas a ela há referências nos livros de Moisés Vinhas, O Partidão - A Luta por um partido de massas. São Paulo: Hucitec, 1982, p. 241, e Fernando Perrone, Relatos de Guerras - Praga, São Paulo, Paris. São Paulo: Editora Busca Vida, 1988, p. 66.

(*) Gildo Marçal Brandão é colaborador de La Insignia e Gramsci e o Brasil, professor associado do Departamento de Ciência Política da USP e coordenador científico do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Democratização e Desenvolvimento (NADD-USP).