segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A desmontagem da "Democracia Representativa" – novo livro de Jean Salem

por Miguel Urbano Rodrigues

Jean Salem, com o seu livro "Élections, piège à cons? Que reste-t-il de la démocratie?" [1] dá um contributo valioso para a desmontagem do mito da chamada democracia representativa. Em apenas 104 páginas, o autor consegue imprimir força de evidência a um conjunto de questões que condicionam o futuro da humanidade. Ilumina as engrenagens da falsa democracia, desmonta os mecanismos do circo eleitoral e alerta para o papel que a manipulação mediática representa hoje na estratégia de poder do grande capital.
Élection piège à cons? Que reste-t-il de la démocratie? [1] , de Jean Salem, é uma contribuição valiosa para a desmontagem do mito da chamada democracia representativa. Em apenas 104 páginas, o autor consegue imprimir força de evidência a um conjunto de questões que condicionam o futuro da humanidade.

Salem, professor de História da Filosofia na Sorbonne, conhecedor profundo do pensamento dos materialistas gregos, consegue numa linguagem muito acessível encaminhar os leitores para a reflexão sobre problemas inseparáveis da crise global que está encaminhando a humanidade para o abismo.

No seu livro Lénine et la Révolution [2] , recorrendo a seis teses do grande revolucionário russo, demonstrou que elas não perderam actualidade na luta contra a barbárie capitalista. Neste ensaio ilumina as engrenagens da falsa democracia, desmonta os mecanismos do circo eleitoral e alerta para o papel que a manipulação mediática representa hoje na estratégia de poder do grande capital.

AS DINASTIAS REPUBLICANAS

Filho de Henri Alleg, Jean Salem herdou do pai o talento de usar a ironia com eficácia na denúncia de facetas pouco lembradas do drama e da comédia politica. Comentando a proliferação das "dinastias electivas" chama a atenção num dos primeiros capítulos para o estranho fenómeno da tendência dinástica em regimes formalmente republicanos. Nos EUA, George Bush pai preparou George Bush filho para chegar à Casa Branca após o intermezzo de Clinton. No Haiti Papa Doc Duvalier teve como sucessor Baby Doc Duvalier. Na Nicarágua foi necessária uma revolução para dar fim à dinastia dos Somoza. No Paquistão Benazir Butto sucedeu a seu pai Ali Butho e o marido, Asif Zardari tornou-se presidente quando a assassinaram. O filho, Bilwal, é o herdeiro provável. Na Índia de Indira Gandhi, filha de Jawaharlal Nehru, o sucessor foi o filho, Rajiv, também assassinado e Sonia, a viúva, uma italiana, somente não foi primeira-ministra porque recusou. Na Coreia do Norte, Kim il Jong herdou a Presidência do pai, Kim Il Sung e o neto deste, Kim Jong Un governa agora o país. Na Colômbia, duas famílias, os Gomez e os Lopez têm vocação dinástica e o actual presidente, Juan Manuel Santos, orgulha-se do fundador da estirpe presidencial, Eduardo Santos. No Togo, Fauce Gnassingbé Éyadmé recebeu o poder do pai Gnassigbé Eyedema. No Gabão, Ali Ben Bongo governa com escassa contestação após o pai, Gongo Omar. Na República Popular do Congo, quando Laurent Desiré Kabila faleceu, o poder foi atribuído ao filho, Joseph Kabila. No Egipto a insurreição popular impediu que Osni Mubarak colocasse no poder o filho Gamal.

Todos definiram nos seus países a forma de governo como democrática.

O SUFRÁGIO UNIVERSAL

O sufrágio universal foi instituído por Napoleão III depois de ter liquidado a República. Não para entregar o poder ao povo, mas como sublinhou Lénine em O Estado e a Revolução – para "o utilizar como instrumento de dominação da burguesia".

Bismark imitou-o depois de ampliar os privilégios dos latifundiários prussianos. Milhões de eleitores acreditaram ingenuamente que lhes fora atribuído um poder real, quando na realidade o sufrágio universal serviu para reforçar o despotismo.

Salem recorda que na sua crítica ao parlamentarismo Lénine nunca defendeu o boicote das eleições. Os comunistas, na sua opinião, deviam estar presentes na DUMA (o parlamento do Czar), mas para, vacinados contra o cretinismo parlamentar, defenderem ali os interesses dos trabalhadores.

Para ele, a democracia capitalista limitava-se a autorizar os oprimidos de três em três ou de seis em seis anos a decidir que elementos da classe dominante os representariam, e calcaria aos pés os seus interesses no Legislativo. Nada mais. Foi igualmente em O Estado e a Revolução – escrito durante a Revolução de Fevereiro de 17 – que Lénine chamou a atenção para a realidade: a verdadeira tarefa do Estado falsamente democrático é executada nos bastidores e não através do Parlamento. Este servia fundamentalmente para enganar o povo e conferir legitimidade à ditadura de classe.

Transcorrido um século, o mundo mudou muito, mas não a função dos Parlamentos. O seu papel resume-se "a avalisar o que foi decidido sem eles".

Jean Salem recorda o que se passou com o projecto da Constituição Europeia para desmascarar o conceito de democracia do Estado burguês.

Quando o povo francês em 2005 votou contra o texto que impunha à União Europeia uma Constituição que institucionalizava o capitalismo, soou o alarme no mundo do capital. E o medo alastrou dois meses depois, quando os eleitores da Holanda num referendo similar rejeitaram também o projecto.

Porventura a burguesia aceitou o veredicto popular? Não.

Os governos no poder mudaram o título do Tratado Constitucional, introduziram-lhe alterações cosméticas, mas, em vez de o submeterem novamente à votação do povo, transferiram para os parlamentos a decisão. O desfecho foi o esperado: em França e na Holanda o projecto recauchutado foi facilmente aprovado em 2008.

Inesperadamente, porém, os irlandeses tinham, em referendo, recusado o mostrengo constitucional. A pressão e a chantagem exercidas sobre aquele povo foram tamanhas que, meses depois, noutro referendo, o Não passou a Sim!

A partir de então não houve mais referendos em países da União Europeia e os parlamentos aprovaram docilmente o famigerado Tratado. Em Portugal, o governo de Sócrates engavetou para o efeito o compromisso de confiar ao povo a decisão.

A dualidade de critérios sobre o carácter democrático de "eleições livres" é enfatizada por Jean Salem a propósito do que ocorreu na Palestina em 2006. Ao território afluíram observadores internacionais de dezenas de países. Os EUA os governos da UE tinham como certa a vitoria das forças de Mamoud Abbas e da sua corrupta Autoridade Palestina, submissa às imposições de Washington e de Israel. Mas, contrariando as sondagens, o Hamas obteve uma vitória límpida. A reacção do imperialismo foi imediata. Aplicaram sanções económicas e politicas a Gaza, bastião do Hamas. Não perdoaram aos palestinos terem desafiado o Ocidente. E em 2008 Israel invadiu a Faixa de Gaza, cometendo crimes que indignaram a humanidade.

O binómio EUA-União Europeia orgulha-se de ser o guardião da democracia, declarando-se sempre disponível para condenar aqueles que a violam.

Mas admite excepções. Quando Ieltsin ordenou o assalto sangrento ao Parlamento russo em 1993 (150 mortos e 1000 feridos) o Washington Post escreveu: "Aprovação geral para a acção de força de Ieltsin, encarada como vitória da democracia". O secretário de Estado Warren Christopher correu a Moscovo para apoiar o golpe porque se tratava de "circunstâncias excepcionais".

O PODER REAL

Comparando a política, tal como é hoje nos países industrializados, a um teatro de sombras, Jean Salem, sempre didáctico, coloca o dedo na ferida.

As pompas oratórias confundem, mas não alteram o movimento da história. O Poder real não está na sala oval da Casa Branca nem em Bruxelas. Quem toma as decisões importantes é a Finança, o Capital, mais exactamente aqueles que representam o deus dinheiro: o Banco Mundial, o FMI, a OMC, os instrumentos de um poder "monográfico e tecnocrático", como diz o italiano Sabino Acquaviva, agentes de uma soberania transnacional, incontrolável, desumanizada.

Os capítulos dedicados por Salem ao funcionamento da farsa democrática permitem ao leitor assistir a espectáculos de teatro de absurdo.

Não revela coisas que não sejam do domínio público. Mas, ao recordar a rodagem da máquina apodrecida do sistema, aviva a repulsa que a engrenagem do capitalismo inspira hoje a uma grande parte da humanidade. Na Europa é particularmente grotesco o debate entre a direita assumida e a social-democracia. Ambos quando governam praticam políticas neoliberais. Somente se diferenciam porque os social-democratas acreditam administrar melhor o capitalismo.

O CIRCO ELEITORAL

Nada ridiculariza mais o discurso sobre a grandeza da democracia americana do que um facto insólito, confirmado pelas estatísticas: todos os presidentes dos EUA são levados à Casa Branca por uma pequena minoria de eleitores: em média 25% dos inscritos. Assim aconteceu com Reagan, Carter, Bush pai, Clinton, Bush filho. Barack Obama, olhado por Mário Soares como esperança da humanidade, recebeu 30%, um recorde.

O sistema é perverso. Com "grandes eleitores" a representarem os votantes, as primárias são condicionadas pelo dinheiro acumulado pelos candidatos em campanhas milionárias, e as convenções que decidem qual o escolhido transcorrem em atmosfera de circo.

Em 2000, Bush filho obteve menos votos do que Al Gore, as fraudes na Florida e noutros estados foram transparentes, houve recontagem, mas, após largos dias, Bush foi proclamado presidente após intervenção do Supremo Tribunal. Assim funciona a "grande democracia americana" …

O modelo é repulsivo, mas contaminou a Europa.

Em Portugal, o PS e o PSD esforçam-se por o aplicar como bons discípulos. Nos programas prometem obras faraónicas, benefícios sociais, aumentos salariais, centenas de milhares de empregos. O discurso, a postura, os gestos, a voz, o penteado, a roupa dos candidatos a primeiro-ministro são estudados e impostos por especialistas contratados, alguns estrangeiros.

Uma vez nomeado, o primeiro-ministro do Partido vencedor engaveta todas as promessas e desenvolve uma política reaccionária com elas incompatíveis.

Os governantes, aplaudidos pelo coro de epígonos, repetem diariamente, monocordicamente, que o regime é democrático, o parlamento a expressão da vontade popular – e os media carimbam a mentira.

Mentem conscientemente. Sabem que a chamada democracia representativa obedece no seu funcionamento a regras concebidas para promover a desigualdade, beneficiar o grande capital e manter na pobreza a maioria da população.

O sistema não tem conserto possível. Não pode ser reformado, tem de ser destruído. A burguesia não entrega o poder através de eleições.

Que fazer, então?

"O que é preciso mudar, na realidade, é o conjunto" – afirma Jean Salem no final do seu belo e lúcido livro – um sistema no qual o omnipresente modelo do mercado é suficientemente repugnante para que analistas mais ou menos desinteressados tenham transformado o cidadão-eleitor num vulgar consumidor da "escolha tradicional (…) um sistema em cujo cerne estão inscritas a desigualdade, a falta de carácter, a violência, a guerra".

Jen Salem escreveu um livro muito importante em que arranca a máscara à falsa democracia imposta aos povos pelo capital.
21/Fevereiro/2012/V.N. de Gaia
Notas:
1- Jean Salem, Élections, Piège À Cons?-Que Reste-T-Il De La Démocratie , Flammarion, Paris, 2012, ISBN: 978-2-08-124879-3
2- Jean Salem, Lenine e a Revolução, Editorial Avante, Lisboa, 2005

O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=2392

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
26/Fev/12

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Desapropriando os pequenos produtores de alimentos para entregar aos grandes investidores internacionais e destruidores do Meio Ambiente

Ministério de Minas e Energia Gabinete do Ministro

PORTARIA No 59, DE 15 DE FEVEREIRO DE 2012

O MINISTRO DE ESTADO DE MINAS E ENERGIA, no uso das atribuições que lhe

confere o art. 87, parágrafo único, incisos II e IV, da Constituição, tendo em vista o disposto no art. 6º do Decreto no 6.144, de 3 de julho de 2007, no art. 2º , § 3º , da Portaria MME no 405, de 20 de outubro de 2009, e o que consta do Processo no 48000.002036/2011-15, resolve:

Art. 1º Aprovar o enquadramento de projetos de investimento em minerodutos, de

titularidade da empresa Ferrous Resources do Brasil S.A., inscrita no CNPJ/MF sob o

no 08.852.207/0003-68, no Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da

Infraestrutura - REIDI, conforme descrito no Anexo à presente Portaria.

Art. 2º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.



EDISON LOBÃO





Anexo à Portaria no 59, de 16 de fevereiro de 2012 - fl. 1

ANEXO



Projetos Mineroduto denominado “Mineroduto Ferrous”, com as seguintes

características gerais:

I - implantação do Mineroduto de Polpa de Minério de Ferro, com

aproximadamente quatrocentos quilômetros de extensão, com origem na

Área de Mineração, no Município de Congonhas, Estado de Minas Gerais,

e término nas Instalações da Estação Terminal, no Município de

Presidente Kennedy, Estado do Espírito Santo;



II - Instalações do Mineroduto:

a) construção de Pista de quatorze metros de largura ao longo dos

quatrocentos quilômetros do Mineroduto para execução da obra e futura

manutenção da Tubulação e da Faixa de Servidão;

b) instalação de Tubulação de Aço com Revestimento Externo em

Polietileno Tripla Camada;

c) instalação de Caixas de Passagem e Tomadas de Pressão no

Mineroduto para atender as Estações de Monitoramento de Pressão;

d) construção de Tanques de Armazenamento em Congonhas/MG;

e) construção de uma Estação de Bombas em Congonhas/MG;

f) construção de oito Estações de Monitoramento de Pressão, em

Congonhas, Itaverava, Presidente Bernardes, Coimbra, Ervália e

Eugenópolis, no Estado de Minas Gerais, Bom Jesus de Itabapoana, no

Estado do Rio de Janeiro, e Mimoso do Sul, no Estado do Espírito Santo;

g) construção de três Estações de Válvulas, em Senhora do Oliveira e

Rosário da Limeira, no Estado de Minas Gerais, e Itaperuna, no Estado do

Rio de Janeiro;

h) construção de uma Estação Terminal, em Presidente Kennedy, no

Estado do Espírito Santo;

i) construção de Obras Especiais (Túneis, Travessias Aéreas, Travessia de

Cursos D’água e Cruzamento de Estradas, Ferrovias e outros Dutos); e

j) construção de Sistemas Especiais de Proteção Catódica e de Fibra

Óptica.

Tipo Mineroduto.

Pessoa Jurídica Titular Ferrous Resources do Brasil S.A.

CNPJ 08.852.207/0003-68.

Localização Municípios de Congonhas, Conselheiro Lafaiete, Itaverava, Catas Altas

da Noruega, Lamin, Piranga, Senhora de Oliveira, Presidente Bernardes,

Paula Cândido, Viçosa, Cajuri, Coimbra Ervália, São Sebastião da

Vargem Alegre, Rosário de Limeira, Muriaé e Eugenópolis, no Estado de

Minas Gerais, Itaperuna, Natividade e Bom Jesus do Itabapoana, no

Estado do Rio de Janeiro, Mimoso do Sul e Presidente Kennedy, no

Estado do Espírito Santo.

Extensão Aproximadamente quatrocentos quilômetros.

Enquadramento Art. 3º , da Portaria MME no 405, de 20 de outubro de 2009.

Identificação do Processo MME no 48000.002036/2011-15.



Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 16.02.2012.

O Mineroduto Minas-Rio é um empreendimento minerário composto por três elementos: a mina, de onde será extraído o minério; o mineroduto propriamente dito, com cerca de 530 km de extensão; e o porto de Açu, construído especialmente para viabilizar a exportação do produto. A mina está localizada em Minas Gerais; o porto, no Rio de Janeiro. Ligando os dois extremos, o mineroduto, que começa em território mineiro, no município de Conceição do Mato Dentro, e termina em território fluminense, justamente no Porto de Açu, em São João da Barra (RJ).
A região de Muriaé será cortada pelo projeto do Mineroduto Minas-Rio, que terá cerca de 530 quilômetros de extensão, saindo da região de Alvorada de Minas, passando por 32 municípios mineiros e ainda pelos municípios do Noroeste e Norte fluminense até o porto marítimo de Açu. Na região de Rosário da Limeira, alguns produtores rurais já foram visitados por representantes da empresa que ainda fazem os levantamentos.
Mineroduto são grandes tubos enterrados cerca de 3 metros de profundidade. Uma faixa de terra de 30 metros de largura será destinada para a manutenção. O minério de ferro é transportado com água por essa tubulação por grandes distâncias, evitando assim o transporte por caminhões nas estradas entre MG-RJ e por trem de ferro. O mineroduto foi projetado para transportar a produção anual – de até 26,5 milhões de toneladas de minério de ferro, a partir de 2012.
Em março do ano passado, um decreto do governo de Minas determinou como área de utilidade pública mais de mil hectares ao longo de 25 municípios do Estado que serão cortados pelo mineroduto. Para a construção do duto, foi necessária a negociação com 1.121 propriedades privadas. Pelo decreto, a Advocacia-Geral do Estado (AGE), em caso de urgência, poderia proceder à desapropriação dos terrenos

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A ‘engenharia da cooptação’ e os sindicatos no Brasil recente

ESCRITO POR RICARDO ANTUNES
SEXTA, 17 DE FEVEREIRO DE 2012

I. A década de ouro

O objetivo deste artigo é compreender por que vem ocorrendo uma relativa desmobilização da sociedade brasileira e, em particular, dos organismos de representação da classe trabalhadora? As respostas são complexas e nos remetem aos ciclos das lutas travadas nas últimas décadas no Brasil.

Poderíamos começar lembrando que, ao longo dos anos 1980, o Brasil esteve à frente das lutas sociais e sindicais, mesmo quando comparado com outros países avançados. A criação do PT em 1980, da CUT em 1983, do MST em 1984, a luta pelas eleições diretas em 1985, a eclosão de quatro greves gerais, a campanha da Constituinte, a promulgação da Constituição em 1988 e, finalmente, as eleições de 1889 são exemplos vivos da força das lutas daquela década. Houve avanços significativos na luta pela autonomia e liberdade dos sindicatos em relação ao Estado, através do combate ao Imposto Sindical, à estrutura confederacional, cupulista, hierarquizada e atrelada, instrumentos que se constituíam em alavancas utilizadas pelo Estado para controlar os sindicatos. Aquela década conformou também um quadro nitidamente favorável para o chamado novo sindicalismo, que caminhava em direção contrária à crise sindical presente em vários países capitalistas avançados.

Entretanto, no final daquela década já começavam a despontar as tendências econômicas, políticas e ideológicas que foram responsáveis pela inserção do sindicalismo brasileiro na onda regressiva, resultado tanto da reestruturação produtiva do capital em curso em escala global como da emergência da pragmática neoliberal, que passaram a exigir mudanças significativas.

A partir de 1990, com a ascensão de Collor e depois com FHC, o receituário neoliberal deslanchou. Nosso parque produtivo estatal foi enormemente alterado pela política privatizante, afetando diretamente a siderurgia, telecomunicações, energia elétrica, setor bancário, dentre outros, o que alterou o tripé que sustentava a economia brasileira (capital nacional, estrangeiro e estatal), redesenhando e internacionalizando ainda mais o capitalismo no Brasil. O setor produtivo estatal era fagocitado ainda mais pelo capital monopolista estrangeiro.

Com um processo tão intenso, a simbiose nefasta entre neoliberalismo e reestruturação produtiva teve repercussões muito profundas na classe trabalhadora e em particular no movimento sindical. Flexibilização, desregulamentação, terceirização, novas formas de gestão da força de trabalho etc. tornaram-se pragas presentes em todas as partes. No apogeu da era da financeirização, do avanço técnico-científico-informacional, do mundo digital onde tempo e espaço se convulsionam, o Brasil vivenciou mutações fortes no mundo do trabalho, alterando sua morfologia, da qual a informalidade, a precarização e o desemprego ampliavam-se intensamente.

Esta nova realidade arrefeceu o novo sindicalismo que se encontrava, de um lado, diante da emergência de um sindicalismo neoliberal, sintonizada com a onda mundial conservadora, de que a Força Sindical é o melhor exemplo. E, de outro, diante da inflexão que vinha ocorrendo no interior da CUT, que cada vez mais se aproximava do sindicalismo social-democrata. A política de “convênios”, “apoios financeiros”, “parcerias” com a social-democracia sindical, especialmente européia, levada a cabo por décadas, acabou contaminando o sindicalismo de classe no Brasil, que pouco a pouco se social-democratizava, num contexto, vale lembrar, onde a social-democracia se aproximava do neoliberalismo.
II. O sucesso do social-liberalismo e o advento do sindicalismo negocial de Estado


Foi neste contexto que Lula sagrou-se vitorioso nas eleições presidenciais em 2002, depois de um período de enorme desertificação social, política e econômica do Brasil, vitória que ocorreu em um contexto internacional e nacional bastante diferente dos anos 1980. A vitória da “esquerda” no Brasil ocorria quando ela estava mais fragilizada, menos respaldada nos pólos centrais que lhe davam capilaridade, como a classe operária industrial, os assalariados médios e os trabalhadores rurais.

Se pudéssemos lembrar Gramsci, diríamos que o transformismo já havia convertido o PT num Partido da Ordem. Quando Lula venceu as eleições, em 2002, ao contrário da potência criadora das lutas sociais dos anos 1980, o cenário era de completa mutação. Ela foi, por isso, uma vitória política tardia. Nem o PT, nem o país eram mais os mesmos. Como já pude dizer anteriormente, o Brasil estava desertificado e o PT havia se desvertebrado.

Quais são as explicações para esse transformismo? Aqui podemos tão somente indicá-las: 1) a proliferação do neoliberalismo na América Latina; 2) o desmoronamento do “socialismo real” e a prevalência equivocada da tese que propugnava a vitória do capitalismo; 3) a social-democratização de parcela substancial da esquerda e sua aproximação à agenda social-liberal, eufemismo usado para “esconder” sua real face neoliberal.

E o PT, partido que se originou no seio das lutas sociais e sindicais, aumentava sua sujeição aos calendários eleitorais, atuando cada vez mais como partido eleitoral e parlamentar, até tornar-se um partido policlassista. Lula passou a cobiçar a confiança das principais frações das classes dominantes, incluindo a burguesia financeira, o setor industrial e o agronegócio. Um exemplo é bastante esclarecedor: quando, ao final do governo FHC, em 2002, houve um acordo de “intenções” com o FMI, este organismo exigiu que os candidatos à presidência manifestassem sua concordância com os termos do referido acordo. O PT de Lula publicou, então, um documento, denominado como a Carta aos Brasileiros, onde evidenciava sua política de subordinação ao FMI e aos setores financeiros internacionais e nacionais.

O resultado de seu governo é conhecido: sua política econômica ampliou a hegemonia dos capitais financeiros; preservou a estrutura fundiária concentrada; deu incentivo aos fundos privados de pensão; determinou a cobrança de impostos aos trabalhadores aposentados, o que significou uma ruptura com parcelas importantes do sindicalismo dos trabalhadores, especialmente públicos, que passaram a fazer forte oposição ao governo Lula.

A sua alteração mais significativa, no segundo mandato, foi uma resposta à crise política aberta com o mensalão, em 2005. Era necessário que o novo governo ampliasse sua base de sustentação, desgastada junto a amplos setores da classe trabalhadora organizada. Foi então que ocorreu uma alteração política importante: o governo ampliou o programa Bolsa-Família, uma política social de perfil claramente assistencialista, ainda que de grande amplitude, que atinge mais de 12 milhões de famílias pobres com renda salarial baixa e que por isso recebiam um complemento salarial. E foi esta política social – assumida como exemplo pelo Banco Mundial – que ampliou significativamente a base social de apoio a Lula, em seu segundo mandado. Ela atingia os setores mais pauperizados e desorganizados da população brasileira, que normalmente dependem das políticas do Estado para sobreviver.

E em comparação ao governo de FHC, a política de aumento do salário mínimo, ainda que responsável por um salário vergonhoso e inconcebível para uma economia do porte da brasileira, significou efetivos ganhos reais em relação ao governo tucano. E, desse modo, o governo Lula “equacionou” as duas pontas da tragédia social no Brasil: remunerou exemplarmente o grande capital financeiro, industrial e o agronegócio e, no outro pólo da pirâmide social, implementou a Bolsa-Família assistencialista e concedeu uma pequena valorização do salário mínimo, sem confrontar, é imperioso dizer, nenhum dos pilares estruturantes da tragédia brasileira.

Quando a crise mundial atingiu duramente os países capitalistas do Norte, em 2007/08, o governo tomou medidas claras no sentido de incentivar a retomada do crescimento econômico, reduzindo impostos do setor automobilístico, eletrodoméstico e da construção civil, todos incorporadores de força de trabalho, expandindo fortemente o mercado interno brasileiro e compensando, desse modo, a retração do mercado externo em suas compras de commodities. O mito redivivo do novo “pai dos pobres” ganhava força.

Mas havia, ainda, outro elemento central na engenharia da cooptação do governo Lula/Dilma: o controle de setores importantes da cúpula sindical, que passava a receber diretamente verbas estatais e, desse modo, garantia o apoio das principais centrais sindicais ao governo (1). Pouco antes de terminar seu governo, Lula tomou uma decisão que ampliou ainda mais o controle estatal sobre os sindicatos, ao permitir que as centrais sindicais também passassem a gozar das vantagens do nefasto Imposto Sindical (2), criado na Ditadura Vargas, ao final dos anos 1930. E, além do referido imposto, elas passaram a receber outras verbas públicas, praticamente eliminando (em tese e de fato) a cotização autônoma de seus associados. Outro passo crucial para a cooptação estava selado.

E, se já não bastasse, centenas de ex-sindicalistas passaram a participar, indicados pelo governo, do conselho de empresas estatais e de ex-estatais, com remunerações polpudas. Portanto, para compreender a cooptação de parcela significativa do movimento sindical brasileiro recente, é preciso compreender esse quadro, do qual aqui pudemos oferecer as principais tendências.

O que nos leva a concluir que, para a retomada de um sindicalismo de classe e de esquerda, há um bom caminho a percorrer. Mas talvez seu primeiro desafio seja criar um pólo sindical, social e político de base que não tenha medo de oferecer ao país um programa de mudanças profundas, capazes de iniciar a desmontagem das causas estruturantes da miséria brasileira e de seus mecanismos de preservação da dominação. E um passo imprescindível neste processo é, desde logo, romper a política de servidão voluntária que empurrou os sindicatos em direção ao Estado.


Notas:

1) O campo sindical do governo é amplo: no centro-esquerda, além da CUT, temos a CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil), formada pela Corrente Sindical Classista que se desfiliou da CUT em 2007 para criar sua própria central. No centro-direita, temos a Força Sindical, já mencionada, que combinava elementos do neoliberalismo com o velho sindicalismo que se “modernizou”, além de várias pequenas centrais como a CGTB (Central Geral dos Trabalhadores do Brasil), UGT (União Geral dos Trabalhadores), Nova Central, todas dotadas de pequeno nível de representação sindical e de algum modo herdeiras do velho sindicalismo dependente do Estado.

No campo da esquerda sindical anticapitalista, em clara oposição aos governos Lula/Dilma, são importantes a CONLUTAS (Coordenação Nacional de Lutas) e o movimento INTERSINDICAL. A primeira se propõe a organizar não só os sindicatos, mas também os movimentos sociais extra-sindicais, e a segunda (ainda que hoje se encontre dividida) é também oriunda de setores de esquerda que romperam com a CUT, tendo um perfil mais acentuadamente sindical e voltado para a reorganização do sindicalismo pela base, contra a proposta de criação de uma nova Central.

2) Em 2010 foram R$ 84,3 milhões para as centrais: segundo o Ministério do Trabalho, as duas maiores centrais, CUT e Força Sindical, receberam R$ 27,3 milhões e R$ 23,6 milhões, respectivamente - valores que representam 80% do orçamento da Força e 60%, da CUT. Em seguida, os maiores beneficiados foram a União Geral dos Trabalhadores (UGT), com R$ 14 milhões; Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), que embolsou R$ 9,9 milhões; Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), R$ 5,3 milhões; e Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), R$ 3,9 milhões.


Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/UNICAMP e autor, entre outros livros, de O Continente do Labor (Boitempo) que acaba de ser publicado. Coordena as Coleções Mundo do Trabalho (Boitempo) e Trabalho e Emancipação (Ed. Expressão Popular). Colabora regularmente em revistas estrangeiras e nacionais.

Publicado originalmente no Jornal dos Economistas do Rio de Janeiro, n. 268, novembro de 2011.

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